As explicações mais comuns para essa mudança de atitude dizem respeito à irritação causada por congestionamentos cada vez mais frequentes, à pressa e ao stress da vida moderna. Esses componentes certamente fazem parte da fúria motorizada, mas não são suficientes para justificá-la. Segundo os estudiosos do comportamento humano, há outras forças que contribuem para a agressividade no trânsito.
As normas de civilidade são mais frouxas no trânsito porque, dentro do carro, quem está ao volante se torna anônimo e tem a sensação de que jamais vai cruzar novamente com os motoristas que encontra nas ruas. Sob o anonimato, certas noções que formam a base da convivência humana se enfraquecem. O contato com olhos nos olhos, fator que sabidamente aumenta a chance de cooperação entre as pessoas, é inexistente. Como resultado, atitudes intoleráveis na maioria das interações sociais, como a agressão verbal e o revide a ela, são praticadas com maior liberdade. Para explicar esse comportamento, o psicólogo canadense David Wiesenthal, da Universidade York, em Toronto, faz uma analogia com a sala de aula de uma escola infantil. Quando a professora apaga a luz para passar um filme, os alunos começam a fazer mais barulho, pois sabem que será difícil identificá-los no escuro. "O anonimato protege os motoristas das consequências negativas de suas infrações", disse Wiesenthal a Veja.
"Faço ioga, sou calma e, por isso, os amigos se surpreendem quando pegam carona comigo. No trânsito, fico irritada com as pessoas que andam devagar, param em fila dupla e cortam os outros carros. Outro dia, gritei com um motorista e só depois descobri que era um amigo meu. Que vergonha!" - Lilian Fujiy, paulista, economista.
A agressividade no trânsito é um fenômeno mundial. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Gallup em 2003, com 13.673 voluntários em 23 países - o Brasil não está entre eles -, apontou um aumento do comportamento agressivo em relação ao fim da década de 90. Em apenas quatro anos, os austríacos, por exemplo, relatavam 13% mais irritação com outros motoristas e 12% mais casos em que se sentiram vítimas da agressividade alheia.
Cada país tem seu estilo próprio de violência ao volante. Os americanos, os que mais admitem ser agressivos ao volante, fazem pressão colando na traseira - assim como os japoneses. Os australianos fazem gestos obscenos e os argentinos gritam alguns palavrões. Em geral, os motoristas se irritam com as falhas dos outros e consideram a si próprios melhores que a média. Um estudo realizado pela Universidade de São Paulo com 500 motoristas paulistas, em 2003, mostrou que, entre os que já haviam se envolvido em acidentes, 23% enxergavam a si mesmos como condutores habilidosos, que não contribuem para o caos no trânsito.
O psicólogo americano Dwight Hennessy, da Buffalo State College, nos Estados Unidos, avalia que um dos estímulos mais fortes à agressividade dos motoristas é a certeza de impunidade, já que é relativamente seguro comportar-se mal no trânsito. Disse ele a Veja: "Embora o trânsito seja regido por um estrito código de regras, as punições são raras quando se considera a enorme quantidade de infrações cometidas. Muitos motoristas procuram fazer justiça com as próprias mãos". A psicóloga Cláudia Aline Monteiro, da Universidade da Amazônia, autora do estudo "Agressividade, raiva e comportamento de motorista", de 2006, observa que, nas grandes cidades brasileiras, o motorista não se sente reprovado em seu círculo social por dirigir de forma agressiva nem é reprimido severamente quando burla as regras. No Brasil, não há estatísticas sobre agressões no trânsito nem punições específicas para elas.
"Na minha profissão a gente está sempre com pressa, por isso não costumo respeitar muito o sinal vermelho. Avanço com consciência. Quando fico irritado com a lerdeza, a distração e as fechadas dos outros motoristas, xingo mesmo. Sei que ninguém vai anotar minha placa só porque fui mal-educado. Desde que virei motoboy, há oito anos, passei a fazer teatro para relaxar. Como ator sou outra pessoa, calma e descontraída." - Cristiano Cardoso, carioca, motoboy.
Dois livros lançados nos Estados Unidos nos últimos anos procuram explicar os motivos da fúria no trânsito nas grandes cidades e suas consequências para a população. O psicólogo americano Leon James, professor da Universidade do Havaí, é autor do livro Road Rage and Aggressive Driving (Fúria no Trânsito e Direção Agressiva). Ele avalia que a raiva dos motoristas não é produto de desequilíbrio individual. Ao contrário, tornou-se um hábito social nos grandes centros urbanos. Um hábito que provoca perdas para todos os envolvidos, ocasionando mais stress e atritos e aumentando os riscos de acidente. Para dimensionar os prejuízos causados pela direção agressiva, o americano Tom Vanderbilt, autor do livro Por que Dirigimos Assim, já traduzido no Brasil, evoca a Teoria dos Jogos, criada na década de 40 pelo matemático John von Neumann e pelo economista Oskar Morgenstern. A teoria com frequência é usada no terreno das ciências sociais para explicar situações estratégicas que envolvem duas ou mais pessoas. De acordo com ela, as escolhas que fazemos no ambiente coletivo não levam diretamente ao sucesso ou ao fracasso individual. A combinação das decisões tomadas por todos os envolvidos é que determina o resultado. No trânsito, isso equivale a dizer que as atitudes individualistas e agressivas não produzem benefício algum. Apenas eternizam a cultura dos raivosos do volante.
Fonte: Revista Veja, 29 de abril de 2009