Diante das frases repletas de gírias, resta a quem está ao volante estacionar e pagar - sempre adiantado, é claro - ou recusar intimidações. Mas, ao acelerar, o "cliente" em potencial é perseguido: "A vaga é aqui, vira à direita, vira, vira!" Seria simples tratar do problema se a atuação dos tão falados flanelinhas fosse restrita ao estádio. Não é. Das proximidades de casas de show, restaurantes, bares e baladas, passando por fóruns, clubes, shoppings e até hospitais e cemitérios, estacionar em vias públicas tem um preço.
Com valores que vão de R$ 0,50 (cada vez mais raros) a mensalidades que chegam a R$ 100 para deixar o carro próximo ao local de trabalho, a ação de flanelinhas faz parte do cotidiano dos paulistanos que circulam pela cidade de carro.
Em portas de estádios como o Pacaembu e o Morumbi, a ação acontece, inclusive, diante dos olhos de policiais militares. A PM afirma, porém, que só pode agir em situações nas quais a vítima preste queixa na delegacia.
Pontos de atuação
Espalhados por toda a cidade, os flanelinhas atuam em 134 pontos considerados críticos, na avaliação de relatórios reservados feitos por 14 batalhões da Polícia Militar, aos quais a São Paulo teve acesso. Os documentos fazem parte de um inquérito instaurado pelo Ministério Público Estadual.
Com base nele, a reportagem percorreu durante três semanas 25 áreas de atuação nas regiões oeste, sul, norte e central de São Paulo.
O objetivo era saber como agem os guardadores de carro. Testemunhou a atuação dos que intimidam, mas também daqueles que já contam com a "amizade" dos "clientes", que preferem os guardadores aos não menos polêmicos valets e estacionamentos com manobristas, cada vez mais caros (chegam a custar R$ 40 por dia, na zona oeste).
Os flanelinhas têm formas particulares de agir e negociar a cobrança. O linguajar, as estratégias para achar vagas e os métodos de trabalho são distintos. Há até os que garantem o serviço de manobrista para levar o veículo à porta do trabalho do cliente antes de "guardar" o carro na rua.
Investigação do MP
Após ser procurado por paulistanos cansados de pagar por uma vaga, o promotor de Habitação e Urbanismo Raul de Godoy Filho iniciou uma investigação, no ano passado.
Agora, ele quer que prefeitura e Estado encontrem uma solução para a categoria. Flanelinha é profissão, chamada de guardador e lavador de carro, reconhecida por decreto de 1977 - mas depende de cadastro no Ministério do Trabalho, coisa que ninguém faz. Tem até um sindicato, que estima a existência de 15 mil guardadores na metrópole.
"Ou regulariza ou proíbe", defende o promotor. "Do jeito que está hoje é irregular, perigoso e acarreta, em alguns casos, até um índice maior de criminalidade", explica Godoy.
Segundo o relatório da PM, em dois batalhões da cidade, onde o trabalho dos flanelinhas foi combatido pela polícia, houve queda nos índices de furtos em veículos.
Se a atuação dos flanelinhas não for regulamentada, o Ministério Público pretende entrar com uma ação civil pública contra a Prefeitura de São Paulo e o governo do Estado.
Em audiência na promotoria, procuradores da Secretaria de Coordenação das Subprefeituras argumentaram que o "exercício ilegal da atividade é questão policial".
Eles informaram ainda que a prefeitura não regulamenta a atuação dos flanelinhas porque não há como fiscalizá-los de forma efetiva, embora defenda o cadastramento dos guardadores.
Já a Secretaria de Estado da Segurança Pública, por meio da Polícia Militar, informou à reportagem que a ação dos flanelinhas pode configurar crime de extorsão e dar margem também a outros delitos, como dano, furto, roubo, constrangimento ilegal e ameaça.
A PM diz ainda ter dificuldade para coibir os crimes porque as vítimas evitam acionar a polícia no momento e no local em que a ação acontece. Sem a comprovação da extorsão, o delito não existe.
Confiança e medo
A regulamentação da categoria é defendida por parte dos flanelinhas. Muitos deles iniciaram a atividade na juventude, seguindo passos de pais e avôs, que começaram a atuar na década de 1950.
Flanelinha ou guardador, o fato é que a atuação, e não o nome, divide a opinião dos paulistanos.
Nas proximidades do shopping Iguatemi, reduto de consumo da classe A no Jardim Paulistano, zona oeste de SP, é comum assistir a flanelinhas manobrando carros, de luxuosos como BMW a populares como Gol.
Os veículos pertencem a funcionários de empresas da região. Um deles, que pediu para não ter o nome divulgado, disse que o serviço, como tudo em São Paulo, subiu nos últimos meses - e muito acima da inflação.
Para ter uma ideia, o designer de 28 anos pagava, três anos atrás, R$ 40 por mês. O valor saltou para R$ 70 em 2010 e chegou a R$ 100 neste ano. Mesmo assim, ele conta que prefere pagar aos flanelinhas e não ao estacionamento regularizado, que cobra R$ 300 por mês.
"Alguns ali são tranquilos, cuidam do carro e não ameaçam. Mas outros são meio mafiosos", conta. "Tinha um funcionário da agência em que eu trabalhava que se recusava a pagar. O carro dele apareceu cuspido, riscado e sem limpador de para-brisa." Segundo a Polícia Militar, em casos de ameaça, o motorista deve ligar para 190 e denunciar a extorsão.
Para Maurício Januzzi, especialista em legislação de trânsito da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), o cadastramento e a regulamentação de flanelinhas é inviável em SP.
"O que o flanelinha muitas vezes pratica não é guarda de carros, mas extorsão. Flanelinha não pode lotear espaço público. Legalizar não é o que a sociedade espera. Tem que combater em vez de cadastrar ou regularizar", diz o advogado. A discussão sobre o tema terá mais uma etapa neste mês, quando o promotor Godoy Filho, integrantes do Estado, da prefeitura e do sindicato estarão à mesa para falar sobre o cadastramento dos guardadores de carro.
Sem uma definição à vista, pagar para estacionar em vias públicas continua sendo uma regra.
Projeto quer "sindicalizar" ruas
Marinaldo Oliveira da Silva, 51, tem uma relação íntima e histórica com os flanelinhas.
O pai dele trabalhou como guardador de carro. O avô, idem. Desde os 16 anos, ele segue um trabalho de família: cuidar de veículos. Hoje, lidera um movimento para regularizar a profissão. O intuito? Criar um projeto que garanta áreas demarcadas para que só os flanelinhas sindicalizados atuem. Flanelinha, por sinal, é um termo que ele detesta.
"Somos guardadores de carros", rebate o presidente do Sindiglaasp (Sindicato dos Guardadores e Lavadores Autônomos de Veículos Automotores do Estado). A aversão ao apelido tem explicação. "Flanelinha é aquele cara que limpa vidro no semáforo."
Marinaldo espera que a prefeitura reconheça a entidade. "Temos documentação no Ministério do Trabalho, tudo certinho", diz.
O sindicato tem hoje 200 formulários entregues para filiação. O principal requisito para se filiar é ter a ficha limpa na Justiça. Questionado sobre quanto um flanelinha pode cobrar, o sindicalista/guardador desconversa. "Isso a gente tem que ver. Mas hoje o motorista já paga R$ 3 por hora na rua. E não tem garantia", diz, referindo-se à cobrança pela Zona Azul.
Como outras capitais lidam com os flanelinhas
Porto Alegre
Flanelinhas são legalizados desde julho de 2009. Para acabar com disputas entre guardadores e dar fim a extorsões em estádios, a prefeitura, a Brigada Militar e uma cooperativa fizeram uma parceria para uniformizar e credenciar um grupo de 72 guardadores. A medida ajudou, mas não conseguiu conter a ação dos irregulares. O pagamento aos credenciados não é obrigatório.
Brasília
Dias após a iniciativa gaúcha, a profissão foi regulamentada no Distrito Federal. Para atuar legalmente nas ruas de Brasília, o flanelinha é obrigado a fazer um curso de capacitação que inclui noções de cidadania, leis de trânsito e defesa do consumidor. Os flanelinhas também aprendem técnicas de lavagem de carros. Mesmo com a iniciativa, ilegais continuam exigindo pagamentos.
RIO
Tem cerca de 5.600 flanelinhas. O Sindicato dos Guardadores Autônomos controla a maioria das vagas, mas há guardadores que atuam em cooperativas. A prefeitura já recebeu denúncias de que flanelinhas iniciantes pagam R$ 5.000 para os que já atuam na rua. Pesquisa da Secretaria de Ordem Pública mostrou que 70% dos guardadores de carro detidos em 2010 têm passagens pela polícia.
Fonte: Folha de S. Paulo (Revista São Paulo), 13 de março de 2011