Jorge Hori*
A via pública deve atender ao público. Mas a que público?
O que usa para transitar, que não é o que mora ou trabalha na margem da via?
Ou para aqueles que a usam como acesso ou saída de seu local de moradia ou de trabalho?
Ou para aqueles que estacionam o seu carro na via, em função de moradia, trabalho ou visita em local do entorno?
Há uma hierarquização das vias, que são estabelecidas pelo Poder Público e para as quais são estabelecidas as regras de uso.
Segundo o Código de Trânsito Brasileiro há quatro categorias de vias urbanas (art. 60) cuja definição consta do glossário no anexo I da Lei:
via de trânsito rápido: aquela caracterizada por acessos especiais com trânsito livre, sem interseções em nível, sem acessibilidade direta aos lotes lindeiros e sem travessia de pedestres em nível;
via arterial: aquela caracterizada por interseções em nível, geralmente controlada por semáforos, com acessibilidade aos lotes lindeiros e às vias secundárias e locais, possibilitando o trânsito entre as regiões da cidade;
via coletora: aquela destinada a coletar e distribuir o trânsito que tenha necessidade de entrar ou sair das vias de trânsito rápido ou arteriais, possibilitando o trânsito dentro das regiões da cidade;
via local: aquela caracterizada por interseções em nível não semaforizadas, destinada apenas ao acesso local e a áreas restritas.
O glossário prevê ainda as vias e áreas de pedestres, como sendo aquelas ou o conjunto daquelas destinadas à circulação prioritária de pedestres.
As vias de trânsito rápido são destinadas exclusivamente ao trânsito, tendo a fluidez e a segurança como condições principais. Não podem nem devem ter nenhuma área de estacionamento e deveriam ter bolsões para a parada de veículos com eventuais problemas. Ou para a transferência temporária de veículos, em caso de acidentes.
A cidade de São Paulo tem um volume muito pequeno de vias urbanas de trânsito rápido, limitada às Marginais do Pinheiros e do Tietê, a uma parte do Corredor Norte-Sul (agora ampliada pela eliminação da interseção do acesso ao Aeroporto), ao corredor Leste-Oeste e a pequenos trechos de avenidas como a Farah Salim Maluf, Tancredo Neves e outras.
Nas vias locais, a preferência seria para o acesso dos moradores e estacionamento dos veículos dos mesmos. Não seriam vias de trânsito externo.
Com exceção de casos de vias sem saída física, muitas das vias locais são estabelecidas institucionalmente, por pressão dos moradores, que se apropriam de vias coletoras, fechando, com obstáculos, as saídas.
Uma outra transformação ocorre quando a área, originalmente residencial, vai se tornando comercial e pólo de gastronomia e entretenimento, como ocorreu com a Vila Madalena. Vias locais se transformaram em estacionamentos públicos, acelerando a transformação. Os moradores, incomodados, vão saindo, e suas moradias vão sendo ocupadas por bares ou restaurantes.
Na hora de pico gera-se um conflito entre o trânsito de acesso e os estacionamentos, já que o trânsito de passagem, pela informação ou por experiências concretas, evita a área.
E se estabelece um conflito de interesses: os que têm alternativas de estacionamentos privados pressionam pela proibição dos estacionamentos na via pública, para facilitar o acesso ao seu estabelecimento e ao serviço de valet. Os que atendem a um público menos disposto a gastar com os valets, pressionam por maior disponibilidade de estacionamentos na via pública. Para o Poder Público é difícil arbitrar o conflito. Em alguns casos, a solução é dada pelos empresários locais, com a implantação de "boulevards", com mudança nas calçadas, para facilitar o tráfego de pedestres, baias para paradas e para alguns estacionamentos. Isso foi feito nas Ruas João Cachoeira e Oscar Freire e agora está sendo proposto para a Vila Madalena.
Só que, na primeira, a predominância é de lojas, com funcionamento diurno, sendo a própria rua uma via coletora/distribuidora e não local, com intenso trânsito de passagem durante o dia. Na Oscar Freire há um misto entre lojas e restaurantes, o que gera um movimento também à noite. Sendo ela também uma via coletora/distribuidora, com um volume de trânsito de passagem desde o seu início, na Av. Heitor Penteado, até a Av. Casa Branca, recebendo ainda o fluxo da Av. Rebouças. Que teriam alternativas de rotas, sem ter de transitar pelo boulevard. A solução do "boulevard" foi satisfatória para os comerciantes das ruas, mas o crescimento do movimento, assim como do trânsito - em geral - mostra que essa é transitória, requerendo uma avaliação maior e melhor sobre como atender às demandas crescentes de trânsito de passagem, de acesso e de estacionamento.
De toda forma, sem o aumento de vagas em estacionamentos privados, o próprio comércio se verá estrangulado no seu crescimento.
Para essa categoria de comércio, sem a possibilidade de parada ou estacionamento a clientela migrará para outras localidades.
Qual é o potencial de estacionamentos que a área pode oferecer? Por exemplo, o uso de vagas em prédios residenciais. Ou dos escritórios nos fins de semana? Quantas vagas serão criadas ou destruídas com a ocupação de terrenos vagos usados anteriormente para estacionamentos? Em tese, nas vias arteriais não deveria ser permitido o estacionamento na via pública. Já nas vias coletoras/distribuidoras sim.
Mas, na prática, vias arteriais se transformaram em grandes vias comerciais que requerem áreas de parada e de estacionamentos. A Teodoro Sampaio, como função, seria uma arterial. Como via real, é local.
Uma regra de proibição genérica de estacionamento em vias arteriais não pode ser aplicada, cabendo considerar o uso do solo lindeiro e as áreas disponíveis para estacionamentos nas vias coletoras/distribuidoras da via, ou do entorno.
Por outro lado, vias coletoras/distribuidoras podem ser usadas como rota alternativa das vias arteriais congestionadas. Nesse caso, a função trânsito de passagem concorre com o estacionamento na via pública.
O pólo gerador de tráfego não pode ser considerado isoladamente, mas pelo conjunto. Nesse caso, a autorização de funcionamento teria de ser condicionada a uma disponibilidade de estacionamento privado, fora da via pública, e de espaço para parada. Não só para as vias arteriais, mas também para certas vias coletoras/distribuidoras.
A classificação prevista no Código de Trânsito Brasileiro é insuficiente ou inadequada para a gestão do conflito circulação/estacionamento. Sem desconsiderar que estacionamento é um dos usos previstos da via pública pelo referido código:
Art. 1º, § 1º - Considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga e descarga.
A visão de prioridade absoluta à fluidez, com sacrifício do estacionamento, pode levar a uma cidade que se movimenta mas não chega ao seu lugar. Porque acessibilidade não é apenas chegar ao local, mas poder parar e ficar.
A outra proposição - essa de caráter ideológico, que cabe discutir - é que o Poder Público deve prover a via pública para a circulação e parada (seja para pessoas como para cargas). O estacionamento deve ser um provimento privado.
*Jorge Hori é consultor em Inteligência Estratégica do Sindepark. Com mais de 40 anos em consultoria a governos, empresas públicas e privadas, e a entidades do terceiro setor, acumulou um grande conhecimento e experiência no funcionamento real da Administração Pública e das Empresas. Hori também se dedica ao entendimento e interpretação do ambiente em que estão inseridas as empresas, a partir de metodologias próprias.
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