Várias iniciativas de governos, montadoras e outras empresas mostram que, pela primeira vez na história, os carros movidos a bateria são uma alternativa real ao motor a combustão, que dominou a indústria por um século. "As crises são momentos apropriados para mudar o jogo", diz Jayme. Dois fatores tornam este momento especial: a contribuição das emissões dos veículos para o aquecimento global e o abalo financeiro das montadoras americanas. Nunca se falou tão sério sobre os carros elétricos.
O brasileiro Carlos Ghosn, presidente da aliança Renault-Nissan, afirma que 10% dos veículos novos vendidos no mundo em 2020 serão movidos a bateria. A aliança já fez acordos com 19 governos federais e municipais para criar infraestrutura de abastecimento elétrico. No início do ano, fechou uma parceria com o Ministério de Indústria e Informação Tecnológica da China para desenvolver projetos de carros elétricos em 13 cidades do país.
O empresário americano Elon Musk foi tratado com desconfiança em março de 2008, quando lançou o Tesla Roadster, um esportivo elétrico com desempenho de Ferrari. Pouco mais de um ano depois, já vendeu 700 unidades do carrão e anunciou que sua empresa lucrou US$ 1 milhão. Várias montadoras, como a General Motors e a chinesa BYD, anunciaram a produção em escala comercial de carros elétricos. Os primeiros modelos chegarão ao Brasil no início de 2010.
Um estudo da consultoria inglesa EDTechEx afirma que um terço dos carros feitos no mundo em 2025 será elétrico. Será o fim anunciado do posto de gasolina ou álcool? Talvez. Mas os elétricos precisam superar dois desafios. Um deles é o preço. Cada modelo custa ao menos o dobro de um carro a combustão. O outro é a autonomia. Para rodar de 100 a 200 km, é preciso carregar a bateria durante 7 a 8 horas na tomada. Não dá para fazer uma viagem sem escalas do Rio de Janeiro a São Paulo (429 km). O Tesla, que chega a 500 km, é uma exceção. Baterias maiores aumentam o alcance do carro, mas roubam espaço do porta-malas. Para sair desse dilema, a estrada que leva a um futuro elétrico se divide em três caminhos - todos ainda incertos.
A primeira estratégia é aceitar o limite de autonomia e trabalhar com modelos tipicamente urbanos: baratos, pequenos e práticos. O exemplo típico é o i-Miev, da Mitsubishi, que custa cerca de US$ 24 mil no Japão. A empresa tem planos de vender 1.400 deles em 2010 e 5 mil unidades até 2011. A Renault anunciou quatro modelos nessa categoria. A Nissan terá o Leaf no ano que vem. A montadora alemã Daimler AG, dona da Mercedes-Benz, deverá produzir, a partir de dezembro, uma versão elétrica do charmoso Smart, seu carrinho de dois lugares. Elon Musk planeja um Tesla familiar. "Os carros elétricos já fazem mais sentido em lugares como centro de cidades, áreas históricas ou locais de lazer, onde a emissão zero de poluentes e o silêncio do motor podem aumentar a qualidade de vida dos habitantes", diz o francês Jean Pierre Lamour, da fabricante de pneus Michelin. Ele é diretor do Challenge Bibendum, uma espécie de rali internacional de carros ecologicamente corretos, que será realizado em 2010 no Rio de Janeiro.
Outra vantagem dos elétricos é menor exigência de manutenção. Um motor a combustão é uma peça de relojoaria com 300 a 400 partes móveis, enquanto um elétrico tem três. O resto da mecânica também é mais simples, já que o veículo não tem itens como caixa de marchas, bomba de combustível ou sistema de resfriamento. Não tem revisão por quilometragem nem troca de óleo. Mas a necessidade de parar para recarregar a bateria por horas é um obstáculo. Para contorná-lo, a segunda estratégia é mesclar o motor elétrico com outro, a combustão. São os híbridos. O Prius, da Toyota, vendeu 1,2 milhão de unidades nos Estados Unidos, onde custa cerca de US$ 24 mil. Virou símbolo de modernidade e consciência ambiental.
Outros híbridos estão a caminho. A aposta da GM é o Chevrolet Volt, um sedã compacto que custará cerca de US$ 40 mil. Ele faz 65 km só na bateria. Depois, se não houver recarga, entra em ação um gerador elétrico a gasolina que garante energia para mais 483 km. Embora reduzam o consumo de combustível, os híbridos ainda são mais caros que os veículos tradicionais. E ainda emitem poluentes - por isso, são vistos como uma tecnologia de transição.
Para alguns, o transporte "limpo" vai exigir uma ruptura com a lógica da indústria automobilística. Essa é a terceira estratégia, proposta pelo israelense Shai Agassi, fundador do projeto Better Place (Lugar Melhor), uma empresa sediada em Palo Alto, na Califórnia. Seu plano é criar uma rede de infraestrutura para vender não apenas os carros, mas o serviço de locomoção. Da seguinte forma: você compra um carro elétrico e contrata um serviço de reposição de bateria. Quando a carga está para terminar, você a substitui por outra, em 70 segundos, em um posto. No fim do mês, recebe uma conta das trocas, como se fosse uma conta de celular.
Uma segunda vantagem é baratear o carro elétrico. Ele seria subsidiado pelo fornecedor de baterias, assim como as operadoras de telefonia subsidiam os celulares. A proposta vem conquistando apoio. A Better Place já recebeu US$ 400 milhões de investidores privados. As primeiras redes nacionais de pontos para troca de baterias começaram a ser montadas, com parcerias locais, na Dinamarca, em Israel e na Austrália. Em Tóquio, a maior empresa de táxi da cidade aderiu. O primeiro posto de troca rápida foi inaugurado lá no início do ano.
Das grandes montadoras, quem aposta mais alto no projeto da Better Place é a Renault-Nissan. Ela anunciou o investimento de 4 bilhões de euros em três anos, para projetar modelos elétricos já adaptados para a troca rápida de baterias e ajudar no desenvolvimento da rede de postos especiais.
A Better Place e a Renault-Nissan negociam com as distribuidoras de combustíveis da Europa, dos EUA e do Japão a construção dos postos para troca rápida de bateria ou para recarga em 20 a 30 minutos, usando equipamentos de alta voltagem. Por que uma empresa que vende gasolina, álcool, diesel e gás natural em suas bombas ajudaria na entrada dos carros elétricos, que em princípio competem com seu negócio? "Essas empresas sabem que o mercado de serviços para os elétricos já está surgindo. Elas enxergam uma oportunidade para manter seus pontos de venda", afirma Jean Michel Jalinier, presidente da Renault no Brasil. "Se não aderirem, outros oferecerão esses serviços."
A imagem desse futuro elétrico começará a ser vista em Portugal. O governo português fez um convênio com a Renault-Nissan para popularizar os carros elétricos, com participação das distribuidoras de combustíveis Galp e de eletricidade Energias de Portugal (EDP). A frota de 4 milhões de veículos servirá para testar a implantação do sistema em ampla escala. Já existem seis pontos de carregamento de bateria em Lisboa. A rede deverá chegar a mil postos em 25 cidades até o fim de 2010. Além de desconto em impostos, quem comprar um carro elétrico poderá ter abatimento em estacionamentos e postos. Ao menos 20% dos carros comprados pelo governo a partir de 2011 serão elétricos. A Mitsubishi anunciou que também lançará carros elétricos lá. Os primeiros carros com alguma tecnologia elétrica chegarão aqui no ano que vem. Em março, a Mercedes-Benz começará a vender no Brasil o S400h, um híbrido que usa um motor elétrico para dividir a tração, mas não pode ser ligado na tomada. O preço ficará na faixa dos R$ 590 mil. A Porsche pretende trazer, em julho, o Cayenne híbrido (a versão a gasolina custa R$ 250 mil). O primeiro elétrico puro mesmo pode ser o esportivo Audi R8 E-Tron, que chegará em 2013. Seus dois motores elétricos garantem uma aceleração de 0 a 100 km por hora em 4,8 segundos e velocidade máxima de 200 km por hora.
Nenhum desses lançamentos, principalmente o elétrico puro, deverá mudar a cara de nossas ruas ainda. A Fiat já descobriu isso. Ela aprimora desde 2006 uma versão elétrica para seu Palio Weekend. Já produziu 36 unidades, quase todas em caráter experimental, para as concessionárias de energia elétrica. Mas a Fiat diz não ter planos de lançar o veículo em escala comercial.
O Brasil está em uma posição peculiar. Graças ao sucesso do programa do álcool, a frota nacional não tem tanto impacto para as mudanças climáticas. Estima-se que 50% do combustível dos carros brasileiros seja derivado de biomassa (somando o álcool puro e o misturado à gasolina). Ele não contribui para o aquecimento global. E reduz a urgência da opção elétrica. Segundo Jalinier, 90% dos motoristas brasileiros dirigem menos de 100 km por dia, o que tornaria viável o uso de um modelo elétrico. "Mas ainda precisamos superar uma limitação cultural", afirma. Para ele, em países como a China, os EUA ou a França, os motoristas sabem de cabeça quanto rodam por dia. "Por isso, conseguem avaliar melhor os benefícios do carro elétrico e entender que não precisarão reabastecer no meio do dia." A tributação no Brasil também atrapalha. O Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) dos carros cresce gradualmente a partir dos modelos 1.0, para incentivar os veículos baratos e econômicos. Os modelos elétricos acabam caindo na categoria "outros", que paga o imposto mais caro.
A predominância do álcool pode retardar, mas não impedirá a multiplicação dos elétricos aqui. Jalinier e Eduardo Jorge, secretário municipal de Verde e Meio Ambiente de São Paulo, estudam um acordo para a prefeitura comprar uma frota de elétricos e criar políticas de incentivos. "Estamos pensando em subsídios para a instalação da rede de recarga e estímulos, como a isenção do pagamento de alguns estacionamentos e pedágios", afirma Eduardo Jorge. Segundo ele, a prefeitura também negocia com a Toyota uma redução nos impostos para os híbridos. "Antes dos carros elétricos, as motos elétricas vão ganhar nossas ruas", diz.
A empresa Motor Z, líder nacional de equipamentos para postos de abastecimento, foi uma das primeiras a apostar nisso. Em 2007, lançou três modelos de lambretas elétricas, a partir de R$ 6 mil. Já vendeu 1.500 unidades. "Um grupo de clientes são as empresas de segurança patrimonial", diz Samir Nunes, gerente de engenharia da Motor Z.
Algumas empresas não querem esperar a chegada do carro elétrico ao Brasil. É o caso da CPFL Energia, uma das maiores concessionárias elétricas do país. "Pedimos às montadoras que nos vendessem dez modelos elétricos para entregar agora. Nenhuma podia entregar imediatamente", diz Mauro Magalhães, diretor comercial da CPFL. "Então, decidimos projetar nosso próprio veículo." Com a Edra, uma pequena montadora de carros off-road, desenvolveram um furgão elétrico, ainda sem nome. O primeiro protótipo será apresentado em um seminário em Campinas, neste mês. O carro, com carroceria de alumínio, leva duas pessoas e 300 kg na caçamba. Anda até 120 km com carga total. Na semana passada, o furgão estava no Detran de São Paulo para homologação.
Ninguém imagina que os carros a combustão vão ficar ultrapassados facilmente. Ao contrário, eles estão ficando mais eficientes. O Audi A3 ganhou um sistema que desliga o motor nas paradas e roda 18 km por litro. É perto dos 23 km por litro do híbrido Prius. Os próprios híbridos são, dependendo de como se vê, uma evolução da tecnologia de combustão para estender seu reinado. É uma tarefa difícil - para não dizer improvável. A indústria automobilística vive hoje o que o professor de Harvard Clayton Christensen chamou, em seu livro "O dilema do inovador", escrito com o colega Joseph Bower, de "tecnologia de ruptura". Em termos simples, isso acontece quando uma inovação consegue atender às necessidades de alguns (mas não todos) consumidores melhor que a tecnologia em uso. Com esse pequeno mercado, as empresas inovadoras conseguem sobreviver e se desenvolver até, finalmente, ficar mais fortes que as tradicionais. Foi o que aconteceu com as câmeras fotográficas. Na década de 90, surgiram as primeiras câmeras digitais, ainda rudimentares, mas que atraíram alguns fãs. Em 15 anos, sumiu o mercado das máquinas que usam filme. O mesmo poderá ocorrer com os carros elétricos. Eles ainda vão mudar de rosto e ganhar mais eficiência.
A Michelin está desenvolvendo um pacote de tração, suspensão e frenagem para eles. Uma das opções tem dois motores em cima de cada eixo das rodas. Um faz com que girem. O outro alimenta a suspensão ativa, que se adapta ao terreno.
O design e o uso dos carros vão mudar com os elétricos, como revela o jeitão do Twizy, um modelo experimental da Renault. "A partir de 2014 lançaremos carros concebidos do zero para usar os motores elétricos", diz Jalinier. Quem ainda acha que os carros elétricos não vão mais longe que o modelo da piada contada por Jayme, do Inee, poderá se surpreender. Talvez até comprar um na próxima troca.
Fonte: Revista Época (SP), 2 de novembro de 2009