O que um empresário paulista do século XXI e um químico francês guilhotinado em 1794 têm em comum? A princípio nada, certo? Sim. Mas, se o francês em questão for Antoine-Laurent de Lavoisier e o empresário responder por Renato Schneider, aí tudo muda de figura.
A despeito da distância secular que separa os personagens, o caminho dos dois se cruzou na mais famosa das leis criadas pelo pai da química. A lei da Conservação da Massa, aquela que diz que na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma foi transgredida por Renato e passou a ser determinante em seu projeto de vida.
Com plena convicção de que nada se perde, mas muito se cria e tudo se transforma, o empresário enxergou no lixo um novo negócio. É com latas de alumínio, garrafas pets e papéis que sujam ruas e poluem rios que este designer e empreendedor de 28 anos planeja faturar R$ 500 mil neste ano.
E um aviso: ele não está sozinho nesta onda. Uma nova geração de empresários brasileiros tem descoberto no lixo a chance para empreender a partir da reciclagem, transformando o que era dejeto em produto - em geral, de forma bastante rentável.
O interesse de Renato Schneider pelo lixo começou na faculdade e ganhou peso nos quatro anos que passou nos Estado Unidos conhecendo processos e produtos fruto da reciclagem do lixo. Quando voltou ao Brasil, resolveu apostar no nicho de mercado ainda incipiente. Funcionou.
Após três anos, a Sicllo Ecodesign deve elevar o faturamento a R$ 500 mil em 2007 com a venda de móveis feitos de placas de tubos de pasta de dente, material de escritório fabricados com plásticos e almofadas com enchimentos de fraldas descartáveis.
A idéia deu tão certo que até o fim do ano Schneider e seu sócio Daniel Arenas devem criar a franquia da marca e iniciar exportações para Estados Unidos e Europa. "Apesar do trabalho ainda enfrentamos a falta de incentivos para produzir com reciclados", afirma Schneider, que empenha parte do seu tempo no grupo de Meio Ambiente do Comitê Jovens Empreendedores da Fiesp. "O Brasil ainda está engatinhando em reciclagem, nossa idéia é difundir o ecodesign e ajudar a Fiesp a potencializar o mercado", diz.
Mercado existe e é amplo. De acordo com a Fiesp, a reciclagem movimenta R$ 4 bilhões por ano no Brasil, nem a metade do seu potencial estimado em R$ 10 bilhões. "O Brasil está longe do ideal", afirma André Vilhena, diretor do Cempre, Compromisso Empresarial para a Reciclagem. "É preciso conscientizar pessoas, desonerar a cadeia e aprovar a política nacional do resíduo sólido que está emperrada no Congresso", conclui.
Hoje os produtos feitos com resíduos pagam 35% de impostos e ainda há indefinição sobre os papéis do Estado, municípios e catadores no recolhimento e separação do lixo. O resultado é um subaproveitamento dos resíduos urbanos.
Das 5,8 milhões de toneladas produzidas em 2005, somente 11% foram recicladas. Em São Paulo, onde 15 mil toneladas são recolhidas diariamente, só 1% é reutilizado. O restante segue para dois dos sete aterros que ainda têm espaço.
NOVOS EMPRESÁRIOS - A equipe da Kargo usa lona em bolsas, Thai faz sandália de pneu e a Sônia investe em decoração
Uma pequena parte, apenas 50 toneladas, é recolhida pelo Projeto Vira Lata. Lá, 56 pessoas, muitas com alfabetização funcional, separam papéis, plásticos e metais que voltam para as grandes empresas como insumo. "Conseguimos emprego e renda. Agora vamos produzir telhas com revistas para sermos também produtores", afirma Jussara dos Santos, uma das catadoras do projeto.
Inclusão social e reciclagem andam, quase sempre, juntas. "O cooperativismo é a melhor maneira de agregar uma comunidade em torno de um projeto de reciclagem", diz Schneider.
Esse foi o caminho escolhido por Sônia Vitaliano e seu irmão, o artista plástico Antônio Carlos Bech, conhecido como Toti, para dar vida a Oficina de Agosto.
Depois de verem o mercado de antiguidades entrar em queda livre com o Plano Real, os dois resolveram aproveitar as sobras da oficina de restauração para voltar ao mercado. Começaram a fazer objetos de decoração com materiais que antes iam para nos lixões.
O primeiro passo foi no Embu (SP), mas Toti escolheu o lugarejo de Vitoriano Veloso (MG), apelidado de Bichinho, para construir o barracão de artesanato. "A população do Bichinho era repleta de mulheres com muita habilidade manual, mas sem nenhum projeto que as acolhesse", explica Sônia.
Hoje são cerca de 200 pessoas na Oficina, muitas delas com a família inteira especializada em fabricar rosas de latas, produzir papel marche ou construir estruturas com tampinhas de garrafas.
Ao irmão Toti cabe a criação artística. Sônia fica encarregada de comercializar as peças no Brasil e a enviá-las ao representante que as vende na Europa. A empresária prefere não falar em faturamento, mas admite: "É um mercado bastante rentável".
Não é atoa que o interesse pela reciclagem vem crescendo exponencialmente. Um dos maiores segmentos é o de latas de alumínio. Segundo o Cempre, em 2005, 9,4 bilhões de latinhas - 96,2% da produção nacional - foram reutilizadas.
Já das 374 mil toneladas de garrafas pet usadas naquele ano 47% foram reaproveitadas, principalmente pela indústria têxtil onde o Brasil tem ganhado destaque. Trituradas e processadas, as garrafas se transformam em fios que são misturados ao algodão e trançados em novos tecidos.
Foi aprimorando este processo e desenvolvendo uma fibra superfina, que a empresa brasileira Recipet ganhou o prêmio da Associação Brasileira da Indústria Têxtil.
Mas o mesmo Brasil que comemora o alto índice de coleta de latas, ainda sofre para dar um destino ambientalmente correto para os mais de 17 milhões de pneus descartados na natureza anualmente.
Quadro que, se depender de Thai Quang Nghia, vai mudar. Thai é o dono da Goóc, uma empresa que fatura R$ 60 milhões por ano com a fabricação de sandálias feitas de pneu reciclado. "Começamos a importar a marca Yepp do Vietnã.
Como a demanda foi muito alta resolvemos produzir aqui", explica o vietnamita. Assim nasceu a unidade da Goóc em Feira de Santana, que este ano receberá R$ 4 milhões para ampliar sua produção de 200 mil para 500 mil pares ano. "A demanda está forte e não queremos deixar o cliente esperando", diz Thai que vende seus produtos em 5 mil pontos de venda no Brasil, além de 15 espaços Goóc e de exportações para América Latina, Europa, Estados Unidos, Japão e Croácia.
Considerados cult por terem a bandeira de ambientalmente responsável, os reciclados estão no topo da onda. Mas, o mundo ecologicamente correto é também exigente. Rodrigo Nicolas e Claudia Coelho, sócios na Kargo Lona, sabem disso. Usam lonas de caminhões como matéria-prima para produzir bolsas, carteiras e cintos, mas esbanjam no uso de cristais, detalhes com metais finos e design diferenciado.
Assim transformaram a marca em uma verdadeira coqueluche no mundo fashion. Hoje vendem para templos do luxo como a Daslu e para mercados notórios por sua exigência como o italiano e o francês.
No próximo dia 16 chegam ao mercado os sapatos, lançados em uma loja que servirá de modelo para a franquia. "Temos planos de abrir seis novas lojas no Brasil, além de uma em Nova York e outra Londres", explica Rodrigo, que estima o crescimento para este ano em 40% sobre os R$ 350 mil do ano passado.
E neste caso, reciclagem, negócios e parceria deu tão certo que Rodrigo e Cláudia já estão de casamento marcado.
R$ 10 bilhões
é o potencial do mercado brasileiro de reciclagem
Apenas 11%
do lixo urbano gerado no Brasil é reciclado anualmente
RECICLA BRASIL:
Latas
96,2% da produção nacional de latas foi reciclada em 2005. Esse empenho superior ao dos EUA (51%)
Papel
Cerca de 2 milhões de toneladas de papel (49,5% do mercado) retornaram à industria como matéria-prima
Vidro
A produção brasileira de embalagens de vidro chegou a 890 mil toneladas em 2005, 46% foram reutilizadas
Pneus
Dos 53,4 milhões de unidades fabricadas, o Brasil reciclou 58%, enquanto nos EUA o índice chega a 73%
Jornal
Papel reciclado agrega valor a objetos de papelaria
Tubo de pasta
Moídas, enriquecem resinas usadas em banheiras
Pneu
Triturado, é misturado ao piche no asfalto
Garrafas Plástica
Moídas, enriquecem resinas usadas em banheiras
Revistas
Em forma de pasta dão formas
Fonte: Revista Istoé Dinheiro, 11 de abril de 2007