- Até que enfim saiu do sufoco. O que faz?
- Sou homem estacionamento.
- Homem estacionamento?
Então contou. O primeiro emprego de Jairo foi o de chamariz de clientes diante de uma loja próxima ao Largo da Batata. Passava o dia se esgoelando ao microfone: "Tudo até 5,99. Camisas, camisetas, cuecas, sutiãs, calçados para crianças, ligas, meia-calça, cintos, prendedor de cabelo." Às 2 da tarde estava sem voz, não podia parar de falar. Havia um intervalo para almoço, comido às pressas num quilo onde o feijão era frio, o arroz uma pasta, o bife de contrafilé duro e a salada murcha. Uma tarde, um velho se aproximou:
- Tem borzeguins?
- Borzeguins? O que é isso?
- Se não sabe, como está anunciando o que tem a loja?
- Tem camisas, camisetas, cuecas, sutiãs, meias, calçados para crianças, ligas, meia-calça, cintos, prendedor de cabelo.
O velho entrou e reclamou com o dono que o funcionário era incompetente, nem sabia se tinha borzeguins. O gerente aproveitou para mandar Jairo embora. Nem, era registrado. Alguém é? O próximo emprego? Segurar o cardápio diante de um restaurante, numa praça de alimentação de shopping, tentando aliciar esfomeados: "Entre, entre. Lasanhas, capeletes, filé com fritas, entre." Ninguém entrava, o lugar fechou. Foi distribuir folhetos imobiliários nos fins de semana. Teve azar, choveu quatro fins de semana seguidos, os folhetos molhavam, os papéis ficavam empastados, ninguém aceitava. Aliás, poucos abriam os vidros, ninguém abre, sabe lá quem se aproxima. Acabou dispensado. Um amigo levou-o a um grupo especializado em vender tranqueiras em cruzamento. É um grupo organizado com vans e Kombis e uma série de pontos nas principais avenidas: chaveiro, isqueiro, porta-celular, carregador de celulares, óculos de sol, água mineral, caneta, mapa, CD e DVD pirateados, bombom, bala e chicletinho, cereja (em geral apodrecidas), Papai Noel subindo escada... Coube a ele um produto difícil que poucos queriam pegar: horrendos bonecos infláveis de plástico representando os Simpson, o Bob Esponja, a Xuxa, aviões da Gol e da TAM. Os pontos eram mantidos à custa de ameaças, seguranças expulsavam os que não pertenciam à máfia.
Não deu certo, ele ficava num ponto, chegava alguém, dizia ser dele o lugar, mudava, vinha outro, e ele foi se afastando até se ver numa ruazinha onde não passava ninguém. Aliás, passou um bando de jovens e estourou todos os brinquedos infláveis que ele deveria vender. Com medo, jogou os plásticos murchos num terreno baldio e desapareceu. Ofereceu-se num delivery de pizzas e disse que entregaria a pé em casas próximas, porém, os motoqueiros se revoltaram: como ser entregador se não tem o instrumento de trabalho, a moto? Tenho os pés, vou com eles. Nada disso, e as gorjetas vão para você? E se todo mundo decide entregar a pé, como fica o nosso trabalho? Mas vocês não usam motos para entregar a cem metros, nem vale a pena. Eu sou bom de corrida, vou num pé, volto no outro. Levou umas porradas e saiu de cena.
O que pode um homem que não tem carteira de trabalho, não tem moto, não tem qualificação, não conseguiu estudar? Mal sabe ler e precisa ajudar em casa? Circulou meses pelas ruas, passou fome, se recusava a usar aquele recurso de pedir: pode me completar a passagem para o interior? Pode me ajudar a comprar um remédio? Tem 50 centavos para completar uma média de café com leite? Pode me pagar um lanche? Pode me dar o dinheiro de um jornal, quero ver os classificados de emprego? Enfim, passando pela Liberdade, num sábado de feira, Jairo viu num estacionamento: Oferecem-se Vagas. Candidatou-se, ganhou o emprego. Agora, ele é homem estacionamento. Chega cedo, coloca um camisetão e vai trabalhar. O camisetão vai até as coxas e tem escrito em letras vermelhas no peito: ESTACIONAMENTO A 20 METROS. Tudo o que Jairo tem a fazer é ficar na esquina da Rua Galvão Bueno com a Estudantes, farejando quem procura estacionar, para acenar com a mão e conduzi-lo rua abaixo até o estacionamento. No meio daquele povão que congestiona tudo, ele funciona como o rebocador que conduz o navio ao porto. Vai na frente e orienta. Volta correndo ao ponto, espera novo cliente. Com o tempo adquiriu o instinto, fareja quem procura vaga.
- Ganho uns centavos por carro e tem freguês que me dá um trocadinho. Ainda por cima os barraqueiros me dão um acarajé ou um iaquissoba de graça. Estou bem feliz.
Fonte: O Estado de S. Paulo (SP), 14 de dezembro de 2007