por Antônio Márcio Buainain*
O longo período de instabilidade deixou seqüelas na maneira de pensar o País. Desenvolvemos habilidade para analisar e monitorar o dia a dia da política macro e dos seus efeitos sobre o humor do mercado; os anúncios das variações de preços, por anos vedetes dos noticiários econômicos, foram substituídos pelas reuniões do Copom, antecedidas e sucedidas de minuciosas especulações e análises sobre expectativas e motivações objetivas e subjetivas da redução de 0,25% ou 0,5% da taxa de juros.
Mas perdemos a capacidade de examinar a conjuntura a partir da estrutura e pensar o hoje com os olhos no futuro. Contam-se nos dedos os temas do debate atual que consideram projeções e cenários desejáveis ou prováveis para o futuro.
Estudos recentes têm revelado que as cidades brasileiras são insustentáveis nos marcos do pacto federativo vigente. A maioria dos municípios é incapaz de desempenhar as funções
constitucionais a eles atribuídas, da educação fundamental e saúde à construção de infra-estrutura local, o que contribui para o agravamento dos problemas urbanos e contínua deterioração da qualidade de vida nas cidades.
Essa situação tem raízes na economia, política e cultura, e está inscrita no próprio pacto federativo. Não é produto apenas da criação politiqueira de municípios; o território brasileiro, subdividido em 5.562 municípios, é 15 vezes maior que o da França, recortada em 36.568 comunas, que respondem, adequadamente, às demandas locais da população. Aprofundar a descentralização só funcionaria com a redefinição do próprio município e de suas funções.
A divisão do bolo orçamentário contribui para inviabilizar as cidades brasileiras, cuja receita própria é insuficiente para enfrentar os problemas locais, que crescem com o próprio desenvolvimento, com soluções cada vez mais custosas. As transferências constitucionais, pautadas em critérios bem-intencionados, mas equivocados, permitem a sobrevivência política da maioria dos municípios, mas não os capacitam para desempenhar suas funções.
A fragilidade financeira debilita o poder local e submete os prefeitos à vontade dos governadores e do poder central, transformando-os em pedintes que usam os deputados como despachantes para aprovar emendas e assegurar a liberação de recursos para obras locais fragmentadas, e que por isso mesmo têm baixo impacto no desenvolvimento local.
A redivisão dos recursos é necessária e urgente, mas por si só não resolverá a fragilidade das cidades, cuja maioria continuará impotente para enfrentar problemas de difícil solução para cada município isoladamente, mas que são responsabilidade municipal nos marcos do atual modelo.
Tome-se o exemplo da saúde pública, área que vem registrando inegáveis progressos desde a implantação do SUS. Serviços de saúde de média e elevada complexidade são afetados pela escala, o que inviabiliza sua provisão eficiente nos 3.500 municípios de menos de 10 mil habitantes.
Como a atenção à saúde é função local, milhares de prefeitos optam pela aquisição de ambulâncias para transportar doentes para cidades vizinhas que têm hospital; alguns constroem hospitais, logo abandonados pelo sucessor por causa das dificuldades operacionais e do elevado custo.
Ainda que ineficientes, comprar ambulâncias e construir hospitais locais são justificáveis no contexto institucional vigente, e muito provavelmente contribuirão para eleger o prefeito a deputado ou transformá-lo em líder político local. Infelizmente, a criação de pólos sanitários, iniciada em 2001, deixou de ser prioridade e vem sendo implantada apenas em alguns Estados em ritmo lento e desigual.
Os municípios brasileiros são profundamente heterogêneos quanto ao dinamismo econômico local, capacidade gerencial, infra-estrutura etc., mas estão sujeitos a um modelo organizacional único. Santa Cruz de Minas, o menor município brasileiro, tem as mesmas funções e organização que Altamira (PA), o maior em território, ou que São Paulo, o mais populoso.
A rigidez institucional é o principal determinante da inviabilidade atual dos municípios. Mesmo sem modificar em profundidade a Constituição, é possível introduzir, aos poucos, mecanismos de coordenação das políticas municipais e uma nova racionalidade na alocação do gasto público. O problema é encontrar os coordenadores para essas mudanças. Com a bola os governadores e parlamentares recém-eleitos e o presidente da República.
*Antônio Márcio Buainain é professor do Instituto de Economia da Unicamp. E-mail: buainain@eco.unicamp.br