Os primeiros dados do Censo Demográfico 2022, divulgados em junho pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), trazem novos desafios para os gestores das cidades brasileiras. Demógrafos e urbanistas ouvidos pelo Valor ressaltam que a desaceleração do crescimento da população, o esvaziamento das cidades maiores, a necessidade de mais domicílios diante da redução do tamanho das famílias e a contínua expansão dos territórios criam a necessidade de repensar a organização e as estratégias de ocupação urbana.
Nesse cenário, dizem, é cada vez mais importante que se revejam as políticas para lidar com os vazios urbanos em áreas que dispõem de infraestrutura e de serviços para a população. O caminho deve ser dar prioridade à ocupação desses territórios e evitar a expansão das cidades com maior espalhamento da população e baixa densidade (relação entre o número de habitantes e o tamanho dos territórios). Cidades mais espalhadas têm custo maior de manutenção com infraestrutura de transporte, saúde e educação.
“O fato de a população não crescer não significa que a cidade parou de expandir. E é essa questão crucial que precisa ser revista”, afirma o arquiteto e urbanista Sergio Magalhães, que foi presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), secretário de Habitação do Rio de Janeiro e hoje é professor do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (Pro Urb) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Expandir a cidade não é bom negócio, a não ser para quem especula com a terra. Isso aumenta os custos urbanos, de infraestrutura, mobilidade...”
Presidente do departamento do Rio do IAB, Marcela Marques Abla diz que é preciso pensar na reorganização das cidades. A dinâmica de crescimento da população e a existência de áreas desocupadas nos grandes centros reforçam a necessidade do debate: “Se temos uma população que cresce menos ou que recua, isso vai requerer um rearranjo de como essa população vive, de como vai utilizar os meios de transporte, de qual é a infraestrutura de cada área. Isso reforça a necessidade de reorganização das atividades das pessoas dentro das cidades. Tem que ter um rearranjo, um estudo para tratar dessa questão”, defende.
O Censo Demográfico 2022 divulgado pelo IBGE apontou que o crescimento anual da população entre 2010 e 2022 foi o menor em 150 anos, de apenas 0,52%, ante 1,17% entre 2000 e 2010. No país, a média de moradores por domicílio caiu de 3,31 em 2010 para 2,79 em 2022. A pesquisa mostrou ainda queda de população em cidades maiores, como capitais, e também nas grandes concentrações urbanas, ou expansão em ritmo menor, enquanto cidades médias e pequenas se destacaram em aumento de habitantes. Cinco dos dez municípios mais populosos perderam população entre 2010 e 2022: Salvador, Recife, Belo Horizonte, Rio e Fortaleza.
Para Magalhães, a expansão contínua das cidades reflete número cada vez menor de pessoas por casa, ausência de políticas de habitação e a percepção de que uma cidade em crescimento sinaliza futuro ou progresso. Só que dois movimentos tendem a ocorrer neste processo de aumento da extensão das cidades. O primeiro é que, como faltam políticas públicas para habitação, desenvolvimento urbano e mobilidade, a expansão se dá por áreas pobres, com pouca ou nenhuma infraestrutura. O segunda é que, se a expansão ocorre sem aumento de população, há perda de habitantes na área da cidade consolidada, o que significa perda de vitalidade: “Há ao mesmo tempo construção de cidade miserável na expansão e perda de vitalidade da cidade consolidada”, diz Magalhães.
Outra informação atualizada pelo Censo é a densidade populacional, que indica o número de habitantes por quilômetro quadrado do território. Pelo Censo, o indicador do Brasil subiu de 22,43 em 2010 para 23,86. Seis municípios têm densidade superior a 10 mil habitantes/km2: São João de Meriti (RJ) e as paulistas Taboão da Serra, Diadema, Osasco, Carapicuíba e São Caetano do Sul.
O fato de a população não crescer não significa que a cidade parou de se expandir. E é essa questão crucial que precisa ser revista”
Os dados sobre a densidade demográfica dos diferentes locais do país saem no momento em que algumas das maiores cidades reveem planos diretores, caso de São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Fortaleza e Porto Alegre. Especialistas ponderam que os indicadores devem ser analisados com olhar local para a área urbana e até para bairros e regiões, e não apenas para o município. A despeito da conotação negativa de casos de densidade extrema - por causa dos reflexos em esgotamento de infraestrutura urbana e perda de qualidade de vida -, densidade elevada não é necessariamente ruim.
“Os países desenvolvidos são densos. A densidade urbana pode ser uma oportunidade para a economia de recursos e de menores emissões de carbono. Isso gera menor custo do poder público para gerir aquela cidade”, afirma Abla, que pondera que outros aspectos devem ser considerados nessa análise, como o índice de desenvolvimento humano (IDH) local. Os dados sobre densidade podem ajudar a identificar os vazios urbanos, locais em que há menos população, mas a infraestrutura está presente, como transporte, saúde e educação, diz Abla.
“É importante identificar os vazios urbanos em áreas que estão ‘infraestruturadas’ e destiná-los à política de habitação de interesse social. Com isso, é possível evitar o crescimento para os extremos das cidades, o movimento da população mais pobre indo cada vez mais para as periferias, em áreas sem infraestrutura, o que acaba elevando os custos das prefeituras”, afirma.
O coordenador do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF), Pedro da Luz, destaca a importância da vinculação entre densidade demográfica e infraestrutura instalada: “Quando se começa articular essas duas coisas, há uma economia [de recursos]”, diz. Isso porque, explicou, é possível se delinear o montante adequado de infraestrutura para atender determinado número de pessoas em uma localidade - seja de saneamento, transportes ou até mesmo estruturas de saúde pública. “Adequação entre densidade e presença de infraestrutura é fundamental no planejamento das cidades”, resume ele.
Um dos problemas da ocupação urbana, segundo Luz, é que ela é definida por lógica que não está nas mãos do gestor público, e sim da iniciativa privada. Por haver mais terra com o setor privado do que com o público, é o empresariado que define o preço do metro quadrado mais elevado em áreas com maior infraestrutura urbana. Assim, esses locais tornam-se inacessíveis à população mais pobre. “E aí acontece de termos favelas e expansão da cidade em periferias sem infraestrutura. Porque é o único local em que se tem consumo possível [de moradia] para as populações pobres”, afirma.
Para dar conta dos desafios, Magalhães defende que a questão urbana entre nas pautas política e econômica. “Eleição após eleição, ninguém discute a questão da cidade”, diz. “Temas como educação, saúde e segurança são discutidos setorialmente. Ninguém fala que a questão urbana é transversal a todas essas. Se não articula educação com o território e com a população, constrói escolas onde não precisa mais e deixa de ter escola onde precisa, por exemplo.”
Valor Econômico - Especial - 22/07/2023