O frisson em torno da transição elétrica nos últimos tempos soa ainda para o senso comum como um modismo da indústria automotiva. O que pouco se aborda, no entanto, é o fato de os modelos movidos a bateria já terem sido vistos como um tipo padrão de transporte urbano — e até um sonho de consumo. Isso se deu 120 anos atrás, na década de 1900, quando os carros elétricos disputavam o mercado mano a mano com os veículos a gasolina, especialmente como alternativas de luxo para a classe alta, táxis e vans de entrega na cidade.
A descoberta da propulsão elétrica remonta ao início do século 19, quando o padre e médico húngaro Anyos Jedlik construiu uma unidade que já continha componentes básicos de um motor a bateria (estator, rotor e comutador). Mais para o fim do século, precisamente no ano de 1881, o inventor francês Gustave Trouvé apresentou o primeiro carro elétrico completo no Congresso Internacional de Eletricidade, em Paris. A partir daí, foram surgindo as primeiras marcas especializadas na Europa e, por conseguinte, nos Estados Unidos.
Mobilidade para alta classe e incursão nas Olimpíadas
Nos anos 1900, os carros elétricos já tinham se tornado uma das formas de propulsão mais populares no planeta. Nova York, por exemplo, abrigava uma frota inteira de táxis movidos a bateria, com os elétricos compondo um terço de todo o efetivo na cidade. Eram carros fáceis de se operar, não precisavam de uma manivela para dar partida e, de quebra, não exigiam destreza para a troca de marchas como num modelo a gasolina.
Tornaram-se ainda, como supracitado, modelos de luxo para mulheres da burguesia, pelo fato de não produzirem ruído e excesso de vibrações.
No início do século 20, 40% dos automóveis nos Estados Unidos eram movidos a vapor, 38% a eletricidade e 22% por motor a combustão. O primeiro carro inclusive a exceder a barra de 100 km/h foi um modelo elétrico, o Jamais Contente, projetado pelo belga Camille Jenatzy em 1899.
Para se ter uma ideia, o carro elétrico se tornou tão grande na indústria automotiva que, em uma das poucas vezes que o esporte a motor entrou nos Jogos Olímpicos, em Paris-1900, havia categorias específicas para modelos movidos a bateria — detalhadamente, provas de 300 km para táxis e vans de entrega.
Pioneiros da era
Antes da ascensão dos modelos a combustão nos anos 1920, vários veículos a bateria detiveram recordes de velocidade e distância. Já citamos aqui o caso de Camille Jenatzky com o Jamais Contente, mas há o exemplo do carro híbrido-elétrico feito por Ferdinand Porsche, o Lohner-Porsche, que teve (à época) ótima performance em testes de velocidade, chegando a 56 cavalos de potência no dinamômetro.
Nos Estados Unidos, tornou-se célebre a jornada de Oliver P. Fritchle (1874-1951), um químico e engenheiro elétrico que disse ter projetado um dos carros com maior autonomia da época: 160 km. Para provar seu feito, o inventor empreendeu uma longa viagem de Lincoln, no Nebraska, Meio-Oeste dos EUA, a Nova York, em seu modelo Victoria Phaeton de dois lugares.
A jornada, que levou 20 dias, transformou Fritchle numa espécie de pioneiro nacional, permitindo posteriormente que ele abrisse até uma loja na 5ª Avenida, em Nova York. Por volta dos anos 1910, o boom dos carros elétricos, no entanto, começou a minguar e o inventor acabou fechando sua empresa pouco depois do fim da 1ª Guerra Mundial (1914-17).
Declínio
A produção de carros elétricos nos Estados Unidos teve seu auge em 1912. No entanto, conforme a tecnologia de combustão interna no início do século foi avançando, pouco a pouco, a gasolina ganhou terreno.
No mesmo ano do pico de produção dos modelos a bateria, Charles Kettering, futuro diretor de pesquisa da General Motors, inventou o motor de arranque, que, aposentando a incômoda manivela, deixou os carros a combustão mais interessantes para o público — além de serem mais baratos.
Após a 1ª Guerra Mundial, o sistema rodoviário dos EUA melhorou e os motoristas preferiram carros com maior autonomia, apesar de todos os feitos de Kettering. A descoberta de petróleo bruto no Texas também reduziu o preço da gasolina e, já no início dos anos 1920, o boom dos carros elétricos da década de 1900 se tornara uma coisa do passado.
E um fator menos racional entrou na equação: mulheres preferiam os elétricos. Não precisava se sujar, nem exigia força na manivela. Os elétricos acabaram ganhando fama de “carro de mulher” e o marketing dos carros a combustão começou a ressaltar o aspecto “másculo” de dirigir, como faz até hoje. Os consumidores compraram a ideia, e elétricos ficaram no passado.
A crise do petróleo nos anos 1970 e o crescente movimento climático na virada dos anos 1990 para 2000 retomou a possibilidade da indústria desenvolver modelos elétricos e híbridos, mas ainda assim o ceticismo era grande. Somente nos últimos anos a eletrificação se tornou ponto-chave na discussão sobre o futuro da indústria automotiva e, agora, fundamental para sua sobrevivência. (Imagem Wikimedia/CC)
Fonte: Olhar Digital, 02/01/2022