Sabe aquela mercearia do bairro que disponibiliza a xepa dos legumes para evitar desperdícios? Ou o rótulo da garrafa PET de água mineral que promete retirar uma embalagem usada de circulação a cada outra que for consumida? E as empresas que adotam procedimentos para a qualidade de vida dos colaboradores?
Pois é, tudo isso está ligado de maneira espontânea ou planejada com a matriz ESG, uma tendência que toma conta do mercado e ressignifica a cultura organizacional não só das grandes corporações, mas também dos pequenos negócios ao redor do planeta.
Há pelo menos dois anos essas três letras sinalizam o nível de comprometimento com a redução de danos e as boas práticas da atividade econômica na busca pelo desenvolvimento sustentável. O "E" é o meio ambiente (environment, na sigla em inglês), o "S" representa a preocupação social e o "G", as diretrizes de governança coorporativa.
De um tempo para cá, juntas, elas aceleram o ritmo de transformação nos modelos de negócios. Agora, além do lucro e dos riscos, é preciso considerar o impacto. O conceito não é novo. Remete ao início dos anos 2000, ao pacto global das Nações Unidas, à criação das organizações de desenvolvimento sustentável (ODS) e aos 10 princípios da agenda traçada para o tema até 2030.
Mas o empurrão que faltava, explica o diretor da Fundamenta Investimentos, Valter Bianchi Filho, veio em 2018, com uma carta assinada por Larry Fink, o CEO da BlackRock, maior gestora de fundos de investimento do mundo e que possui ativos avaliados em mais de US$ 8,5 trilhões.
No texto, Flint defendia não se esperar mais por governantes capazes de assumir o compromisso ESG. Seria necessário, segundo ele, que os próprios detentores de capital fizessem os recursos fluir de modo natural em direção às empresas com melhores práticas. — A carta forçou o avanço da pauta. Em 2019, no Brasil, tivemos o incidente de Mariana, em Minas Gerais, envolvendo a Vale, que ampliou a pecha negativa em alguns setores. Empresas de serviços e varejo foram rápidas em capturar a tendência ESG e majorar as estratégias —avalia Bianchi.
O conteúdo do manifesto reverberou no Fórum Econômico de Davos, na Suíça, no ano seguinte. Ricardo Assumpção, CEO da Grape ESG, consultoria especializada no assunto, afirma que deste momento em diante a ficha caiu e o mercado entendeu que "risco climático também é um risco financeiro", gera ameaça constante à reputação das companhias e, por consequência, aos seus valores de mercado.
A pandemia, comenta o executivo, lançou mais holofotes sobre a fragilidade do planeta e trouxe uma relação direta com o aquecimento global. Levantamento da organização britânica Global Justice Now deu números aos fatos e identificou que entre as cem maiores economias do mundo, 69 são corporações privadas e somente 31 governos de países.
— É claro que isso aumenta a responsabilidade das empresas, porque foram evidenciados riscos não-financeiros durante a pandemia, que geraram impactos econômicos absurdos não só nos governos. Significa que sem ESG, haverá dificuldade de crédito e alocação da marca junto ao novo público consumidor formado pela geração Z, mais antenada no consumo sustentável — resume Assumpção.
O CEO da construtora Melnick, Juliano Melnick, é testemunha das transformações. A empresa realizou IPO (lançamento inicial de ações na bolsa de valores) no ano passado e já percebe as mudanças no perfil de captação. Segundo o executivo, os principais bancos passaram a classificar o ESG das tomadoras de financiamento e oferecem melhores taxas às que cumprem os requisitos ambientais, sociais e de governança.
Outro aspecto, diz Melnick, é que as grandes companhias da construção civil estão no radar dos fundos internacionais. Neste contexto, a iniciativa Asset Zero, lançada em 2020, reúne os 73 maiores gestores e tem em mãos US$ 32 trilhões em ativos, destinados a promover a transição para a chamada economia verde e zerar as emissões de gases de efeito estufa até 2050. No momento atual, sem critérios mínimos de ESG, é impossível atrair esse tipo de recurso.
Não é o caso da incorporadora gaúcha, que tem no Pontal do Estaleiro o seu marco de atuação responsável. O projeto, com valor geral de vendas (VGV) superior a R$ 300 milhões, localizado na orla do Guaíba, em Porto Alegre, é o primeiro da marca a contar com o selo Aqua-HQE, uma das principais certificações internacionais de construção sustentável.
— Começou lá atrás e 80% das exigências nós já praticávamos. Bastou um pequeno passo adiante. É algo icônico, mas não o início da nossa preocupação com ESG — comenta Melnick, ao lembrar da ação I Love Poa, destinada a recuperar espaços públicos da Capital, em parceria com outras empresas.
O empreendimento prevê torres de escritórios, hotel e centro de eventos. Para alcançar a certificação, é preciso estimar o impacto ambiental ao longo do tempo com base em metodologias bastante rígidas. A partir disso, criam-se mecanismos de mitigação e aqueles que atingem os parâmetros recebem o selo. O Pontal, por exemplo, terá redução de 47% no consumo de água, economia de 18% na emissão de gás carbônico e 50% na gestão de resíduos, durante a sua vida útil.
A Lojas Renner captou como poucas companhias brasileiras o espírito dos novos tempos. Até porque não é de hoje que investe em práticas sustentáveis, focadas na redução de consumo de energia e gás carbônico. A diferença é que, desde 2018, o conceito ESG passou a ser um dos quatro compromissos públicos assumidos pela varejista e está muito mais presente nos estantes e manequins e no engajamento de toda a cadeia produtiva.
O gerente geral de Sustentabilidade da empresa, Eduardo Ferlauto, conta que o atributo foi turbinado a partir do lançamento do selo "Re" de moda sustentável. O projeto envolveu universidades e parcerias técnicas para melhorar a eficiência e resultou em um tecido construído pela sobra dos cortes.
O processo de inovação transitou por sistemas de moagem e desconstituição até se tornar matéria-prima para novas peças. Foi um divisor de águas na operação, que, já naquele momento, reinseriu 51% dos resíduos no mercado.
— Entendemos que o produto é a principal forma para materializar e comunicar essas ações. Quando colocamos a jornada de sustentabilidade associada à inovação, ela se transforma em algo estratégico e integrado com o negócio fim — explica Ferlauto.
O caso amplia o que pode ser considerado um ciclo de sucesso para a chamada economia circular. É que o suporte técnico oferecido à cadeia produtiva, com ações e soluções, trouxe efeitos positivos para os fornecedores. Um deles, conta o executivo, conseguiu economizar R$ 1 milhão porque, antes, precisava pagar a alocação de restos de jeans em um aterro sanitário especial.
A partir do projeto, as sobras foram revendidas a um desfibrador — primeira etapa da logística reversa para construir uma nova peça a partir das fibras geradas com reciclagem. A receita extra obtida foi reinvestida no processo de lavandaria e, esse mesmo fornecedor, escolheu parâmetros de ecoeficiência para o consumo de água.
De olho no futuro, a Renner, que já atua com 79,9% de algodão certificado e 56,8% de produtos menos impactantes, lançou uma nova coleção de calçados, roupas e bolsas, em parceria com a gaúcha Insecta Shoes, reconhecida por unir ética e estética na produção de sapatos veganos e produtos ecológicos. A coleção, batizada de collab, utiliza matérias de reuso, além de borrachas de origem reciclada e, até mesmo, tecidos de PET reciclado. Este é mais um dos trunfos para atingir a meta fixada em 80% de produtos menos impactantes no portfólio e atingir as expectativas das novas gerações de consumidores, afirma Ferlauto.
Fonte: GZH, 09/07/2021 (Free-Photos)