Você já observou como são os térreos dos novos prédios construídos em São Paulo, principalmente nas quadras próximas de estações de metrô e corredores de ônibus? Não é raro notar um padrão: um espaço para a entrada dos moradores e o restante com vitrines envidraçadas dos comércios, com acesso direto pela calçada e sem muros. Isto é, condomínios com a chamada “fachada ativa”.
Com incentivos atrativos para o mercado imobiliário, estabelecimentos nos térreos voltaram a ser projetados em massa na cidade, o que não ocorria há décadas. Essa transformação foi estimulada pelo Plano Diretor, de 2014, e Zoneamento, de 2016, a fim de reduzir a contínua construção de condomínios fechados com muros, aumentar o movimento nas calçadas e potencializar a oferta de comércios e serviços locais, reduzindo a necessidade de longos deslocamentos.
Por questões econômicas e o tempo que um projeto imobiliário leva até ser entregue, o resultado desses incentivos passou a se tornar visível apenas mais recentemente. A questão seria, portanto: deu certo? Em parte.
Com os incentivos, esse novo padrão tem se difundido em detrimento dos prédios cercados por muros. Além disso, alguns desses espaços se tornaram atrativos e têm chamado a atenção. Um exemplo é o Arturito, restaurante da chef Paola Carosella que reabriu na terça-feira, 26, na fachada ativa de um edifício de alto padrão na esquina da Avenida Rebouças com a Rua Chabad, nos Jardins, após anos em um pequeno imóvel na Rua Artur de Azevedo.
Por outro lado, grande parte das fachadas ativas estão sem ocupação após a entrega do prédio. No meio, fala-se que não estão adaptadas às necessidades do mercado, dentre outros motivos. Essa situação se repete até no entorno das estações com mais apartamentos lançados, como no Butantã, zona oeste, onde o Estadão identificou várias lojas novas com placas de venda e aluguel.
O cenário de “fachadas ativas inativas” foi uma das pautas mais citadas ao longo da revisão do Plano Diretor e do Zoneamento, no ano passado, e voltou a ganhar força com o fechamento de comércios de bairro conhecidos. Entre os exemplos mais recentes, estão a Cristallo da Rua Oscar Freire e a Mercearia São Pedro — demolidas neste ano para dar lugar a prédios altos. Parte dos especialistas entende que não está ocorrendo uma mudança natural desses pequenos negócios para endereços no térreo de edifícios, gerando um esvaziamento.
O cenário de esvaziamento parcial não foi totalmente imprevisível. Em 2015, um estudo encomendado pelo Secovi-SP (que representa o mercado imobiliário) e a Associação Comercial de São Paulo (ACSP) avaliou que havia limitações na viabilidade mercadológica das fachadas ativas.
Elaborado pela consultoria Urban Systems, o levantamento apontava que parte das fachadas ativas não seriam sustentadas pela demanda, mesmo com o aumento de apartamentos no entorno. “Dessa forma, irão gerar rotatividade e alta vacância das áreas comerciais nas fachadas ativas, podendo criar ambientes urbanos degradados. Podem inverter a lógica de cidade compacta, necessitando atrair público de fora do raio de influência considerado e gerando a necessidade de implantação de estacionamento”, concluiu.
Prédios com fachada ativa podem ter mais área construída, dentre outros benefícios atraentes ao mercado. Por isso, o estudo de 2015 apontou que “empreendedores serão induzidos a aproveitar o incentivo máximo da lei independentemente da existência ou não de demanda para áreas comerciais na fachada ativa, uma vez que essa implantação representa baixo impacto em relação ao custo total da obra e pode gerar mais receita”.
Diante dessa situação, as revisões do Plano Diretor e do Zoneamento no ano passado fizeram alterações nos estímulos para as fachadas ativas. Parte delas atendeu a demandas apresentadas por associações dos setores do comércio e das incorporadoras.
Relator das revisões, o vereador Rodrigo Goulart (PSD) chama as mudanças de “atualizações”. Ele destaca, principalmente, as que reduziram exigências para ter acesso ao incentivo e facilitaram espaços para carro. Dessa forma, os novos projetos estimulados podem ter mais vagas de estacionamento na frente da loja e comércio apenas em uma das frentes, desde que dentro de determinados padrões.
“Pouquíssimos conseguem funcionar sem ter vaga”, justifica o vereador. Ele também cita casos de prédios que tinham uma das fachadas voltadas a ruas sem saída. “Com certeza, não vai ter comércio. Primeiro, porque as pessoas nem vão saber como chegar”, aponta. “Foram adaptações pela necessidade”, justifica. Além disso, na nova lei do Plano Diretor, há incentivos municipais extras caso as fachadas ativas sejam combinadas com praças privadas de uso público.
Outra alteração foi incluída pela Prefeitura, com o novo entendimento de que a fachada ativa não precisa estar totalmente na altura da via pública. Dessa forma, até um terço da área construída da fachada ativa “pode estar localizada em diferentes níveis da edificação (como no subsolo, por exemplo), desde que seja garantido acesso por logradouro público em todos os níveis”, diz a nova lei.
O que dizem o mercado e pesquisadores?
Seriam essas alterações suficientes? Representantes do setor falam que o momento atual é de transição. Já especialistas salientam a dificuldade de conectar as demandas do varejo com o perfil de espaços produzidos no térreo, assim como questionam se o cenário tem sido positivo para a cidade.
“Tem muita fachada em ponto bom, em Pinheiros, nos Jardins, na Vila Mariana, que está vazia ou mal ocupada”, comenta Ricardo Palmaka, CEO da Lidra, empresa especializada em soluções para fachada ativa. “Às vezes, até é bonita, mas bonita para quem? Todo mundo quer ter uma cafeteria relevante, só que não tem como ter tantas cafeterias.”
O consultor atua na adaptação de projetos para atender às demandas do varejo, especialmente de redes, o que inclui até alterações em térreos prontos sem uso. Segundo ele, a situação ficou mais evidente por volta de 2020, com maior volume de prédios com esse perfil prontos. “O pessoal viu que o que se fez não casou. Por isso, a gente acabou sendo bastante procurado.”
Palmaka aponta que diferentes comércios precisam de estruturas variadas e boa visibilidade. Para restaurantes, cafés e afins, por exemplo, é preciso ter uma infraestrutura de exaustão. Outro ponto são as limitações em ter um negócio no térreo de um condomínio predominantemente residencial, a fim de evitar conflito com moradores, como barulho e funcionamento até tarde.
Vice-presidente e coordenador geral do Conselho de Política Urbana da ACSP, Antônio Carlos Pela conta que a instituição contratou uma pesquisa para verificar a vacância e se ocorreu a expulsão ou não de comércios locais na cidade. Além disso, durante a revisão do Plano Diretor, a associação chegou a sugerir a criação de uma cota para micro e pequenos varejistas nas fachadas ativas.
Ele observa que pequenos comerciantes estão saindo de alguns locais, mas avalia que o momento é de transição. “Se o edifício é novo, mais moderno, o custo tende a ser mais elevado. É natural”, diz.
Originalmente, contudo, as fachadas ativas em São Paulo não foram pensadas pelo poder público para atrair fluxo de pessoas de carro, mas de pessoas que moram, trabalham ou frequentam o entorno. Isto é, que estão a pé, de bicicleta ou de transporte coletivo, por exemplo.
Pesquisadora de mercado imobiliário, Thaty Galvão diz que a produção imobiliária não “trocou seis por meia dúzia”, como se desejava no Plano Diretor. Isto é, não ocorreu uma mudança automática dos estabelecimentos em imóveis horizontais para a fachada ativa. “Esse tipo de comércio de rua ainda não pegou”, comenta. “Tudo é muito novo ainda.”
Vice-presidente de Legislação e Urbanismo Metropolitano do Secovi-SP, Ricardo Yazbek avalia que as mudanças feitas no zoneamento para as fachadas ativas foram avanços e que os comércios nos térreos são positivos para a cidade. “Sem vaga na frente (para estacionar) não se adequava a alguns usos”, diz.
Segundo ele, a maior parte dessas unidades comerciais é vendida a investidores, mas algumas incorporadoras têm optado por gerenciar as lojas. “Boa parte dos projetos ficou bacana, com apelo de locação”, avalia.
Na Mitre Realty, por exemplo, há empreendimentos com e sem fachada ativa, alguns vendidos e outros geridos pela empresa. Segundo a VP de Negócios, Gabriela Canfora, a empresa não produzia prédios com esse perfil até a mudança no Plano Diretor de 2014. “Faz todo o sentido ter essa homogeneidade. A gente vê bastante fora do País, esse térreo mais fluído”, aponta.
Um empreendimento recente da Mitre envolve um futuro prédio no Brooklin, na zona sul, cujo lançamento tem destacado que incluirá o restaurante de um famoso chef, por exemplo. “É um benefício para o empreendimento”, diz Gabriela. Por outro lado, em vizinhanças muito residenciais, por vezes a incorporadora opta por não fazer fachada ativa, ao não identificar uma demanda.
Professora de Arquitetura e Urbanismo da USP, Beatriz Rufino cita que um dos locais em que essa transformação ficou evidente é no lado par da Avenida Rebouças, principalmente nas quadras próximas da Avenida Brigadeiro Faria Lima. Nesse trecho, percebe-se a atração de espaços de alto padrão. “A gente pode até discutir que é um movimento do shopping voltando às ruas”, compara.
Para a pesquisadora, a mudança envolve uma estratégia imobiliária, por vezes com travas para evitar comércios considerados não tão atraentes. ”A ocupação natural é de grandes cadeias e lojas”, comenta. “(Decide-se por) Não baixar o preço, até porque pode significar certa popularização (em bairros valorizados). Com a intensificação construtiva, tem uma sofisticação dos negócios.”
A professora explica que as décadas de pouca produção de fachada ativa na cidade estão ligadas ao Plano Diretor, de 1972. A lei estimulava mais áreas permeáveis, o que gerou a profusão de torres estreitas, no meio do terreno e afastadas da calçada.
“A fachada ativa é positiva, mas com uma série de contradições”, diz. “O que se está vendo é a perda desse comércio mais local e de bairro, que se acomodava em pequenas casas e lugares que estão sendo demolidos”, aponta.
Estado, 01/04/2024