A crise no setor hoteleiro agravada pela pandemia tem dado um novo destino a prédios clássicos, sem deixar de lado suas características originais.
Com a fuga de turistas e sem eventos, congressos e seminários por dois anos, cerca de 7.000 hotéis e pousadas fecharam definitivamente no país.
Empresários do mercado imobiliário veem nessas portas fechadas a oportunidade de transformar os imóveis em residências com história e atrativas para investimentos.
A transformação é por meio do processo de revitalização de construções antigas, conhecido como retrofit, e amparada por novas legislações.
No Rio de Janeiro, onde a oferta de quartos de hotéis triplicou antes da Copa do Mundo e das Olimpíadas, a tendência chegou a prédios icônicos.
Após o fim dos torneios esportivos, quartos sobraram, e hotéis começaram a fechar. O isolamento social em 2020 foi a gota d’água para o setor.
No começo da pandemia, o primeiro prédio de concreto armado na América do Sul, que é também o primeiro e um dos mais famosos cinco estrelas do Brasil, encerrou suas atividades.
Construído há exatos 100 anos, o Hotel Glória foi comprado em 2008 pelo Grupo EBX, do empresário Eike Batista, por R$ 80 milhões. A promessa era reformar o edifício para a Copa de 2014.
O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) concedeu um empréstimo milionário para as obras em 2010, mas a reforma nunca foi concluída.
Agora, um dos cartões postais do Rio passa por um retrofit para ter 266 apartamentos residenciais de 70 m² a 314 m², além de quatro lojas no térreo.
De acordo com o fundo imobiliário Opportunity Imobiliário e a SIG Engenharia, responsável pela construção e incorporação, o investimento no retrofit do Glória é de R$ 400 milhões —sendo R$ 100 milhões pelo terreno, R$ 50 milhões na decoração e R$ 250 milhões para as obras que vão preservar a fachada neoclássica.
A previsão é de que os apartamentos sejam entregues em 2026. Com preço médio do m² avaliado em R$ 17 mil, a unidade de menor metragem vai custar R$ 1,2 milhão.
No bairro vizinho ao Glória, a D2J Construtora comprou Hotel Flamengo Palace para transformá-lo em um residencial com 42 unidades a partir de R$ 580 mil, cada.
O negócio só foi possível após a legislação local permitir a construção de imóveis menores que 40 m² e a mudança de uso de prédios abandonados, segundo Daniel Afonso, diretor da D2J.
"Quartos de hotel são mais fáceis de transformar em studios, um segmento com demanda em alta, principalmente, entre investidores em imóveis para locação", afirma.
O edifício dos anos 70 ganhou sacadas, portaria digital e um rooftop com vista para a Baía de Guanabara.
"Há muitos hotéis que não são de redes com dificuldade para resistir no ramo hoteleiro e que estão em regiões centrais, muito bem localizados", afirma Maxime Barkatz, fundador da Ilion Partners, especializada em reforma de prédios antigos do centro de São Paulo.
"Os alugueis por temporada criaram mais pressão sobre os hotéis. Soma-se o fato de haver muitas pessoas que não se reconhecem nos prédios de construção nova."
Barkatz diz que, em São Paulo, há um forte movimento por moradia no centro. "As empresas estão saindo, e as pessoas estão se mudando para a região central", diz.
A empresa transformou o antigo hotel Jaguar, na avenida Duque de Caxias, em uma moradia estudantil.
E na rua Marquês de Paranaguá, o hotel LOI Suites está passando pelo retrofit para virar um edifício residencial para locação.
"Tentamos manter o máximo possível da estrutura, da arquitetura, da fachada, dos materiais, para resgatar a força dos prédios e tentar produtos acessíveis", diz Barkatz.
Preservar os aspectos originais do ambiente e modernizar sua infraestrutura é o que diferencia o retrofit de uma reforma.
Segundo Lígia Marta Mackey, vice-presidente no exercício da Presidência do Crea-SP, o edifício precisa adequar instalações, como as elétricas, às exigências atuais e para poder ampliar a vida útil.
"Um imóvel construído há décadas vai precisar refazer a carga elétrica para comportar as atuais necessidades dos moradores, como ar-condicionado, tomadas, wi-fi."
Roberto Racanicchi, coordenador adjunto da Câmara Especializada de Engenharia Civil do Crea-SP, diz que o alto risco de incêndio em grande parte dos edifícios da região central paulista existe por falta de reformas corretas.
"Sempre precisa ter um profissional habilitado, especializado, para não sobrecarregar a estrutura ao mudar a função do imóvel, não impactar os prédios vizinhos e estar com o auto de vistoria dos bombeiros em dia. É preciso um projeto."
Embora já estejam construídos, o tempo entre a compra de hotéis que passarão por retrofit e o lançamento dos apartamentos residenciais no mercado não é muito menor do que o de um edifício novo. Segundo Barkatz, leva, em média, um ano para a prefeitura analisar e aprovar a mudança de função de um imóvel. E as obras podem durar mais de seis meses.
O tempo para um empreendimento construído do zero chegar ao consumidor é hoje de dois a três anos após a compra do terreno.
Investir nos hotéis é mais fácil do que em outros tipos de imóveis comerciais, já que a disposição da estrutura é mais parecida com a de prédios residenciais.
"A metragem pode ser pequena para a hotelaria, mas para moradias por temporada é ideal", diz Maxime Barkatz.
"Há muito espaço para crescer", afirma.
Associações do setor hoteleiro estimam recuperar os níveis pré-pandemia de ocupação no país somente em 2023.
Folha, 26.ago.2022