Perto de revisarem a lei que define como cada pedaço de chão da cidade pode ser ocupado ou utilizado, a prefeitura e a Câmara Municipal de São Paulo estão diante da decisão de mexer ou não em um vespeiro: discutir se é legítimo que bairros ricos sejam os mais protegidos contra a construção de prédios e comércios com grande capacidade de receber moradores e frequentadores.
Levantamento da Folha com base na atual lei de zoneamento, no Plano Diretor e na renda da população mostra que, entre todas as quadras próximas a eixos de transporte público, as 10% mais ricas concentram trechos bloqueados contra o adensamento populacional e construtivo.
Essas regiões têm, em média, 12% da sua extensão blindada contra grandes prédios. Entre os 10% mais pobre, porém, só 1,7% da área conta com esse tipo de proteção legal.
Territórios imunes à verticalização estão basicamente no quadrante sudoeste da capital paulista. São bairros como Alto de Pinheiros, Butantã, Itaim Bibi, Morumbi e Jardins.
Predominam nessa porção da cidade zonas residenciais ou de corredores nos quais são permitidas atividades comerciais com pouca capacidade de público, embora possuam infraestrutura de transporte coletivo.
O zoneamento restritivo nos eixos de transporte dos bairros ricos afronta o objetivo da recém-aprovada reforma do Plano Diretor Estratégico, a lei em vigor desde 2014 que determina como a cidade deve crescer até 2029.
Ao ser revisado no mês passado, o plano ampliou estímulos financeiros para a construção de prédios nos eixos onde há corredores de ônibus e acesso ao transporte sobre trilhos.
O plano permite construir até cerca de 12 vezes a área do terreno, sem impor limite de altura para edifícios, nas quadras tocadas pelo raio de 700 metros das estações de metrô e trem ou por faixas de 400 metros no entorno dos corredores de ônibus.
Regras inaplicáveis a localidades cuja Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo determina o baixo adensamento. Alto de Pinheiros e Butantã, por exemplo, possuem cerca de 60% dos seus eixos de transporte protegidos pelo zoneamento.
Sem a mesma proteção, bairros fora do quadrante sudoeste oferecem pouca resistência às transformações impostas pelo setor imobiliário.
Caso emblemático é o do Tatuapé (zona leste), onde construtoras aplicam em larga escala as regras construtivas mais permissivas dos eixos de transporte. Não existe um único metro quadrado desse território protegido pela Lei de Zoneamento.
Lucas Chiconi, urbanista membro do IAB-SP (Instituto de Arquitetos do Brasil), afirma que a desigualdade no zoneamento reflete privilégios historicamente concedidos à elite paulistana. "Está equivocada a ideia de que só o patrimônio do rico merece ser preservado."
Morador do Tatuapé, Chiconi aponta a demolição quase total da vila João Migliari, no mesmo distrito, como exemplo do desprezo pela memória da classe trabalhadora. O casario operário só não foi completamente derrubado devido a uma ação judicial e ao início do processo de tombamento. O que sobrou está cercado por edifícios em construção.
Chiconi não se diz contrário a empreendimentos imobiliários, mas critica o desequilíbrio na aplicação de regras para proteger a história e a qualidade de vida em diferentes regiões da cidade.
Quem defende que esses bairros residenciais ajardinados permaneçam intocados aponta que isso traz vantagens ambientais para a cidade. Lucila Lacreta, urbanista do Movimento Defenda São Paulo, destaca os benefícios à saúde coletiva proporcionados pelo microclima dessas ilhas verdes.
Benefícios evidenciados por estudos, diz o médico patologista Paulo Saldiva.
Ele explica que cérebros humanos guardam características primitivas, do tempo em que homo sapiens eram coletores. Esse é um dos motivos pelos quais a presença abundante de natureza traz sensação de bem-estar, inclusive com efeitos anti-inflamatórios.
Além disso, a temperatura pode ser mais baixa nessas áreas. Há ainda redução significativa do ruído e melhora da qualidade do ar. Mas esses benefícios ficam restritos a quem vive nesses bairros. As características climáticas, por exemplo, desaparecem a uma distância de 1,5 quilômetro da área verde, afirma o médico.
Saldiva diz que o Plano Diretor, embora tenha acertado ao adensar corredores de transporte, falhou ao não estimular áreas verdes em todos os bairros.
Há outras questões ambientais a serem consideradas nos bairros-jardins, como a permeabilidade do solo necessária para amenizar enchentes. Muitas das áreas protegidas estão na várzea do rio Pinheiros, onde o baixo adensamento e o plantio de árvores com grande capacidade de drenagem foram soluções para a ocupação do pântano.
É no mundo das leis, entretanto, que está a fortaleza desses bairros contra a verticalização. Muitos têm nos contratos de loteamento a garantia de preservação do traçado de ruas, quadras, quantidade de árvores e até a imposição de ocupação de uma só família por imóvel. Um modelo importado há mais de um século pela inglesa Companhia City, inspirado nas cidades-jardins europeias.
Os contratos desses loteamentos serviram de base para zoneamentos e tombamentos.
Litígios entre proprietários interessados em flexibilizar regras contra grupos que defendem a preservação são comuns, diz o advogado especialista em direito imobiliário Marcos Prado, do escritório Cescon Barrieu.
Decisão recente do STJ (Superior Tribunal de Justiça) determinou a demolição de um prédio no Alto da Lapa por entender que a construção desrespeitou o conceito de bairro-jardim.
Prado é contra a prevalência de um instrumento contratual privado sobre as regras urbanísticas, mas avalia que, neste momento, há certa vantagem jurídica para os conservadores. Algo que prefeitura e Câmara podem mudar ao revisarem o zoneamento, segundo o advogado.
A Prefeitura de São Paulo informou que a sua proposta de revisão do zoneamento tem o objetivo somente de propor ajustes à legislação vigente. "Não serão alterados mapas de zoneamento, ou seja, não haverá modificações nos perímetros de zonas, tampouco dos parâmetros urbanísticos ou questões relacionadas ao uso e atividade permitida", informou, em nota.
Já o vereador Rubinho Nunes (União), presidente da Comissão de Política Urbana da Câmara, afirmou que tentará discutir, a partir de agosto, o adensamento em todos os locais onde considerar importante.
Se ocorrer nos moldes da revisão do Plano Diretor, as modificações a serem realizadas pela Câmara podem ser mais significativas do que prevê a prefeitura.
Folha de S. Paulo - Cotidiano - SP - 26/07/2023