tem sido pauta constante nos debates sobre o planejamento da cidade de São Paulo. Essa pauta esteve presente nas discussões sobre o Plano Diretor Estratégico (PDE) de 2014, que propôs redistribuir pequena parte dos ganhos decorrentes da valorização imobiliária para o conjunto da sociedade, especialmente às camadas mais pobres da população, através de instrumentos como a outorga onerosa do direito de construir e as zonas especiais de interesse social.
As recentes revisões parciais do PDE e da Lei de Zoneamento também foram marcadas pelos debates sobre o adensamento urbano associado à construção de prédios altos denunciados como parte da “cidade como negócio”, com garantia de lucros para poucos combinados com muita destruição de tecidos urbanos pré-existentes e do meio ambiente e expulsão da população mais pobre para áreas com pouca infraestrutura da cidade.
Essas revisões parciais foram feitas principalmente para garantir maiores possibilidades de exploração econômica da terra urbana, principalmente nas áreas ampliadas dos eixos de estruturação da transformação urbana (eixos de transporte público de média e alta capacidade). Essa revisão da revisão retomou uma prática perniciosa de alteração pontual da Lei de Zoneamento realizada sem critérios e justificativas técnicas. Conjuntos de lotes e lotes isolados foram favorecidos com regras de uso e ocupação do solo que atendem prioritariamente a interesses privados individuais. Tudo isso é feito com o interesse no aumento de potencial construtivo, encoberto sob o argumento falacioso do adensamento e da verticalização em áreas supostamente com boa infraestrutura que devem ser bem aproveitadas para a realização da cidade de 15 minutos e para a construção de habitação de interesse social para a população de baixa renda. Por que esse argumento é falacioso?
Primeiro porque o adensamento e a verticalização defendida por representantes do mercado de incorporação imobiliária servem prioritariamente para a construção de grandes empreendimentos destinados a adquirentes privilegiados de alta renda que garantam as grandes margens de lucro almejado com a comercialização do máximo de área construída possível. Os aumentos das densidades construtivas ocorrem desacompanhados de aumentos nas densidades populacionais, pois “os incrementos nas quantidades de áreas construídas não são preenchidos com habitações e moradores”. Disso resulta o aumento de 91,10% de domicílios sem ocupação na cidade no período entre 2010 e 2022.
Segundo porque a “cidade de 15 minutos” construída com esse adensamento e com essa verticalização é, na verdade, para poucos endinheirados, pois a população da periferia continua vivendo na cidade de 4 horas, onde a oferta de trabalho e renda é alcançada com transporte público superlotado e desconfortável.
Terceiro porque os empreendimentos habitacionais de interesse social (EHIS) produzidos nas últimas décadas pelas empresas que atuam no mercado imobiliário são, na verdade, fake EHIS, pois não são entregues à população de baixa renda apesar de serem produzidos com benesses da legislação urbanística, como isenção de outorga onerosa e aumento de potencial construtivo. A falta de regulação e controle da destinação das unidades desses EHIS faz com que elas não sejam adquiridas por quem mais precisa de moradia, a população de baixa renda. Assim, essas unidades são majoritariamente apropriadas por adquirentes com renda alta e por agentes da exploração imobiliária rentista. Com isso, tornamse parte de um mercado “sem controle” em que o controle do comprador ou locatário dessas unidades é feito segundo os interesses das empresas.
Conforme estudos do LabCidade da FAU-USP, a produção imobiliária na cidade de São Paulo passou de 35 mil unidades habitacionais em 2008 para 65 mil em 2019. Dessas unidades, 60% estavam dentro da faixa de preço de até 350 mil reais (segmento econômico), porém com financiamentos muito caros colocados disponíveis pelo mercado imobiliário e acima do poder de compra de quem precisa de moradia, e 51% se enquadravam no teto de preço do Programa Minha Casa Minha Vida. A porcentagem de unidades nos eixos de mobilidade passou de 9% em 2014 para 39% em 2019. O quanto dessa produção habitacional foi adquirida pela população de baixa renda? Certamente muito pouco ou quase nada. Soma-se a tudo isso o fato de que a produção imobiliária tem ocorrido com maior número de subsolos para garagens que provocam o rebaixamento de lençóis freáticos e sem observar as restrições à ocupação urbana definidas pela Carta Geotécnica de São Paulo.
Acreditamos e defendemos o direito de construir São Paulo sem destruir seu patrimônio histórico e ambiental, com distribuição de ganhos da produção imobiliária, com proteção do direito à moradia digna, com ampla participação da sociedade civil, de direito e de fato, na definição dos rumos de uma cidade justa para todos. •
Tereza Beatriz Ribeiro Herling, Anderson Kazuo Nakano, Lucila Falcão Pessoa Lacreta, Renata Esteves de Almeida Andretto, Fábio Benini Cabral, Francisco João Moreirão de Magalhães, José Zildo Almeida da Silva, Maria Laura Fogaça Zei, Elodia Fátima Filippini, Marilene Ribeiro de Souza, Ana Luiza Dalcin Aragão, Ivan Carlos Maglio, Caio Plessmann de Castro, Severina Ramos do Amaral da Silva, Durval Nicolau Tabach, Angeli Nobre, Stela de Camargo da Dalt, Angélica Benatti Alvim, Simone Salles, Rodrigo Faria G. Iacovini e José André de Araújo são membros do Coletivo da Sociedade Civil não Empresarial do Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU).
O Estado de S. Paulo - Espaço Aberto - SP - 19/08/2024