São Paulo completou 470 anos em processo de acelerada verticalização. Para urbanistas, a maior concentração de pessoas em edifícios mais altos é positiva, mas traz pelo menos dois grandes desafios para a cidade: mais trânsito e dificuldade para escoamento das aguas pluviais. Com o aumento dos eventos extremos e chuvas cada vez mais fortes na cidade, edifícios maiores e com garagens mais profundas ampliam o risco de alagamentos também nos bairros mais nobres.
Para o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, ex-secretário de Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente (2011-2012) e ex-vereador na capital paulista, a cidade está atrasada em implementar uma estratégia de desenvolvimento urbano eficiente para enfrentar, por exemplo, a maior recorrência de chuvas fortes.
Bonduki explica que a altura dos edifícios não é um problema e que inclusive é parte da solução. “Verticalização pode até ter causar um desconforto de paisagem, para alguns, mas no aspecto da sustentabilidade não é ruim porque tende a aumentar o adensamento de pessoas em áreas que já possuem infraestrutura”, diz. Para ele, é importante que esse processo contemple edificações para todas as classes sociais na zona central.
A vantagem está na possibilidade de reduzir deslocamentos longos. “Se tivermos uma cidade mais sustentável do ponto de vista da mobilidade, com um transporte coletivo melhor e com mais pessoas morando próximas de onde trabalham, os ganhos são muito grandes.”
O principal problema de prédios mais altos, inclusive em bairros tradicionalmente formados por casas residenciais e pequenos comércios, não está na altura, e sim no subsolo, pois os empreendimentos acabam aumentando o espaço das garagens para atender a demanda de compradores que não abrem mão dos carros.
“Em geral, os prédios têm taxa de ocupação máxima de 50% do terreno [para erguer torres], o que não é nada ruim. Só que o subsolo ocupa 85%. Então, você impermeabiliza o subsolo, o que dificulta o escoamento da água quanto há essas chuvas fortes”, explica. “Uma mudança de modelo eficiente seria uma cidade em que o carro seja menos necessário e as garagens dos prédios pudessem ser menores para manter a permeabilidade de áreas maiores do solo”.
Na visão do presidente do Conselho Federal de Engenharia (Confea), Vinicius Marchese, a solução para esse tipo de problema passa por um olhar mais técnico de prefeitos, secretários e vereadores.
“Debater a altura dos edifícios é supérfluo. O adensamento é melhor do que o espraiamento da cidade porque facilita o acesso a serviços onde já existe infraestrutura mais adequada para a população. Mas é realmente necessário um plano técnico de permeabilização e a devida regulamentação para que a cidade se desenvolva de acordo com o interesse de todos, e não pelos interesses imobiliários ou de poucos segmentos.”
A visão é compartilhada pela presidente do presidente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de São Paulo (Crea-SP), Ligia Marta Mackey. Para ela, a cidade não comporta mais construções não planejadas. “É preciso aproveitar o que já existe e cujo uso esteja ocioso. O desafio é imenso, mas será superado com muito debate técnico e envolvimento de profissionais multidisciplinares que enderecem todos os pontos de urgência das medidas que têm impacto no adensamento populacional, contemplando toda a diversidade do município de forma a mitigar cada vez mais os efeitos extremos da crise climática”.
Há várias outras ações que os especialistas sugerem para que a cidade se adapte mais rapidamente às necessidades atuais, mas todos ponderam que a transformação exige horizonte amplo de 20 a 30 anos tomando decisões com mais respaldo técnico e menos influência política e comercial.
“Há uma série de evidências que colocam em pauta a necessidade de criar planos emergenciais e ações de médio e longo prazo que possam lidar com agilidade contra eventos que antes eram imprevisíveis”, comenta a urbanista Adriana Levisky, sócia do escritório Levisky Arquitetos/Estratégia Urbana.
“Ninguém imaginava o volume de chuva com a frequência que vem acontecendo e causando falta de energia, queda de árvores”, diz, sugerindo maior atenção com o manejo da arborização na cidade e também mais atenção com as calçadas que, para ela, são uma “vergonha” e tornam a São Paulo menos amigável para deslocamentos e passeios a pé.
Em relação à revisão do Plano Diretor Estratégico da cidade, aprovada pela Câmara dos Vereadores no ano passado, há divergências sobre a eficácia das mudanças.
Bonduki, que participou da elaboração do plano de 2014, lamenta que as mudanças permitiram justamente mais garagens em edifícios de alto padrão próximos a transportes coletivos e prédios que ocupam terrenos maiores nos chamados “miolo” dos bairros. “O mercado imobiliário tenta jogar no sentido contrário do que deveria ser feito sob argumento de que fazem mais garagens, por exemplo, porque o consumidor quer.”
É preciso aproveitar o que já existe e cujo uso esteja ocioso. O desafio é imenso, mas será superado com muito debate técnico”
Já o advogado e doutor em direito urbanístico Wilson Levy aponta que de qualquer maneira o adensamento populacional tem efeitos positivos, apesar das críticas. “Um ponto importante dessa discussão é que São Paulo, ainda com todos esses estímulos, é muito menos adensada do que outras cidades ao redor do mundo que são reconhecidas pela qualidade da vida urbana, como são os casos de Paris, Londres, Nova York e Barcelona”, diz.
Segundo Levy, que também é representante do Crea e vice-presidente do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental (Conpresp), uma cidade mais compacta reduz emissões de gases nocivos ao ambiente porque os deslocamentos ficam mais curtos. “Mas é preciso também apoiar ações de habitação de interesse social.”
Para Adriana Levisky, embora esteja atrasada em um plano de desenvolvimento moderno e sustentável, São Paulo não está condenada. “Se paramos para pensar nos próximos 470 anos, precisamos ter atenção em decodificar a saúde urbana. A cidade precisa querer ter condições de oferecer um ambiente saudável”, diz.
“Proporcionar acesso mais democrático a uma saúde física, mental e emocional e uma saúde social.” Para ela, isso contribui também que é a questão da resiliência e do enfrentamento das mudanças climáticas, com deslocamentos menores e menos emissão de gases.
“É preciso uma cesta de políticas públicas, o zoneamento é muito importante para induzir e estimular novos empreendimentos”, comenta. “Então se eu permito um maior adensamento, como é o caso do Plano Diretor e da Lei de Zoneamento da cidade de São Paulo, próximo a locais de transporte eu amplio a oferta de moradia e essa ampliação de oferta traz consigo a redução do preço.”
“O zoneamento é parte estruturante fundamental da política urbana, mas ele não pode vir sozinho”, comenta a urbanista. “É preciso ampliar o cardápio de possibilidades de moradia, como o aluguel, que no mundo inteiro é reconhecido com um meio importante de acesso a moradia e que no Brasil perdeu muito espaço para casa própria, que claro, tem um papel importante no estímulo do mercado, da construção, da incorporação imobiliária e também alternativas de reassentamento de pessoas que estão áreas de risco.”
Para o economista Guilherme Dietze, da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), seria importante para o desenvolvimento sustentável a longo e médio prazo de São Paulo a instalação de empresas em zonas periféricas da cidade. A ideia foi levantada na gestão de Fernando Haddad como prefeito (2013-2016), mas que até hoje ainda não decolou.
A estratégia se baseou principal em incentivos fiscais como a desoneração do Imposto sobre Serviços (ISS) e IPTU para empresas que se instalassem em bairros afastados do centro, mas faltaram investimentos em transporte público e formação qualificada de mão de obra.
“Não é somente colocar o ISS para baixo e falar ‘agora se vira’. Tem todo um trabalho que às vezes precisa até de pavimentação das ruas, organização dos estabelecimentos comerciais e do transporte público e segurança, além da mão de obra”, afirma Dietze. “A prefeitura precisa buscar mais entidades como o Senac e o Senai para preparar as pessoas para trabalhos que determinadas regiões da cidade mostre vocação”, avalia.
Maior cidade do Brasil, São Paulo conta com 11,4 milhões de habitantes, de acordo com o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) concluído no ano passado. O PIB da capital paulista já beira o trilhão: foi de R$ 829 bilhões em 2021, segundo último dado consolidado do IBGE. Se fosse um país, a cidade figuraria como a 60ª maior economia do mundo, à frente de Marrocos e Argélia, entre outras nações.
Valor Econômico - SP - 25/01/2024