Samuel Hanan* - Tendo à frente o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a reforma foi prometida como neutra - em relação à carga tributária - e simplificadora, com efeitos altamente positivos porque reduziria custos burocráticos e acabaria com a autofágica guerra fiscal derivada da tributação sobre o consumo no destino e não mais no local da produção dos bens e serviços. O discurso criou uma onda de otimismo com a perspectiva do novo marco pôr fim ao manicômio tributário em que se transformou o país.
Vislumbrou-se, finalmente, a correção de grande parte das injustiças tributárias e maior segurança jurídica para os cidadãos, empresários e investidores. Esse clima, entretanto, não resistiu às primeiras ações do governo no sentido de dar concretude à promessa. A expectativa começou a ser baixada pelo próprio governo, que logo passou a admitir o crescimento do PIB em 2% em uma década, muito abaixo da estimativa inicial. O próximo passo foi fatiar a reforma. Na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) enviada ao Congresso Nacional, a tão sonhada simplificação resumiu-se à aglutinação de cinco tributos - IPI, PIS e COFINS (todos da União), ICMS (dos estados) e ISS (dos municípios) - em apenas um, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), com duas alíquotas, uma federal e outra de caráter estadual e municipal.
Foram anunciados como os pontos mais positivos da proposta a cobrança de imposto no destino e não mais na origem, com transição gradativa e planejada para implementação completa em 9 ou 10 anos, já a partir de 2024/2025; a unificação da legislação em todo o território nacional; a tributação diferenciada substancialmente menor ou até mesmo a isenção sobre produtos de primeira necessidade, e a eliminação definitiva de cumulatividade. A tributação sobre o consumo seria completada pela instituição do Imposto Seletivo Federal (ISF), aplicável sobre bens nocivos à saúde e ao meio ambiente.
Com o texto aprovado na Câmara dos Deputados e enviada ao Senado, as análises dos especialistas revelaram um ponto amplamente positivo: excepcionalidades amplamente redutoras de tributação sobre produtos da cesta básica, hortifrutis, transporte coletivo e produtos das áreas de saúde e educação. No entanto, essas excepcionalidades - talvez resultantes de pressões setoriais - acabaram atingindo um patamar muito elevado, a ponto de comprometer o atual nível de arrecadação tributária. Para se alcançar o equilíbrio, haverá a necessidade de tributação sobre os setores não contemplados no texto com aplicação de alíquotas muito elevadas, possivelmente no patamar entre 25% e 29% da receita. Isso elevará o Brasil à condição de uma das 4 maiores tributações sobre o consumo do planeta. A título de exemplos, nos Estados Unidos essa tributação é de 7,5%, na Suíça, de 7,70%; no Japão e na Coréia do Sul, 10%; no Canadá, 5%, e no México, 16%. O atual recordista é a Hungria com 27%.
É assustador, ainda que, a priori, não seja possível concluir definitivamente sobre o aumento ou redução da carga tributária porque as alíquotas do novo IBS somente serão definidas por Lei Complementar, em até 180 dias após a aprovação da PEC pelo Congresso Nacional, o que provavelmente se dará apenas no segundo ou terceiro trimestre de 2024, com risco de tramitação mais lenta em razão de ser um ano eleitoral. O cumprimento da promessa de neutralidade, por sua vez, ainda é uma incógnita porque não são conhecidas as propostas do governo quanto aos tributos sobre renda, patrimônio, encargos sociais e previdenciários, e outros, cuja soma corresponde a 56%-58% do produto total atualmente arrecadado. Da mesma forma, não foram revelados os produtos e setores a serem tributados pelo ISF, bem como os tetos das alíquotas e como serão aplicados os recursos tributários garantidos pelo novo imposto. Essas questões transformaram o otimismo em inquietação de vários setores econômicos diante do efeito negativo desses índices caso o Senado, na apreciação do projeto, não corrija tais distorções. A gritaria já começou.
O Centro de Estudos das Sociedades dos Advogados calculou que a categoria sofrerá aumento superior a 400% na tributação. Empresários dos setores de construção e serviços afirmam que atividades hoje tributadas entre 3,65% até 8% sofrerão, com o novo IBS, aumentos que podem chegar a mais de 100%. O apelo, agora, é para que o Senado examine com maior atenção o fato de que as reduções substanciais concedidas a muitos setores - inclusive não essenciais - levará à punição de outros setores de atividades importantes para o país. Uma saída talvez seja o Senado fixar na PEC o teto de tributação do IBS e do Imposto Seletivo, bem como vetar a majoração de alíquota antes de completada a transição do regime de cobrança na origem para a cobrança no destino, o que deverá acontecer em 2033.
Também soou estranho que, em plena tramitação da primeira etapa da Reforma Tributária na Câmara dos Deputados, o governo federal tenha atropelado a PEC da reforma, editando num domingo (30 de abril) a Medida Provisória nº 1.171, pela qual passou a tributar os rendimentos de brasileiros residentes no país e que possuem investimentos financeiros em empresas ou trusts sediados em paraísos fiscais e/ou em locais com regime tributário diferenciado, como é caso do estado norte-americano de Delaware. A MP inclusive estabeleceu alíquotas progressivas que podem chegar a 22,5% sobre os recebimentos, inclusive sobre desvalorização do real.
A mesma MP irá alcançar também a transferência de bens - imóveis, cotas e/ou ações de empresas, etc - para herdeiros e sucessores, em vida ou pós-morte (ITCMD). Trata-se de outro ponto que merecerá atenção especial dos senadores, uma vez que patrimônio nem sempre confere liquidez ao sucessor ou herdeiro. Além disso, não está explícito se será respeitado o princípio da capacidade contributiva dos beneficiários. Matéria que requer urgência, pois esse tributo produzirá efeito já em 2024 (portanto antes do IBS, que vigorará a partir de 2026) e, embora não tenha sido fixada alíquota progressiva de até 22,5% para rendimentos financeiros, não existe no texto da MP qualquer referência ao ITCMD. Ainda chama a atenção na nova postura do governo em relação à reforma o anúncio de estudos para a tributação dos cidadãos super-ricos, detentores de fundos de investimento exclusivos ou outros diferenciados e com poucos cotistas, utilizados por famílias de alta renda que pagam impostos apenas na hora do resgate. Projeto de Lei com a medida deverá ser enviada ao Congresso já em agosto, após o fim do recesso parlamentar. Além disso, igualmente por meio de legislação infraconstitucional, o governo pretende implantar a tributação sobre apostas esportivas - conhecidas como Bets), com alíquotas de 18% sobre o total de apostas das empresas, e de até 30% do valor bruto auferido pelos ganhadores, além de instituir cobrança de outorga sobre a atividade. É indisfarçável a mudança de comportamento do governo nessa questão.
O ministro da Fazenda, que vinha priorizando a PEC da Reforma e conduzindo o processo de maneira habilidosa - ganhando elogios de parlamentares, agentes econômicos e de grande parte da mídia -, agora opta por priorizar o aumento da arrecadação para a União em 2024, uma vez que a reforma tributária, por força de lei, não poderá produzir efeitos para o próximo ano e, talvez, sequer para 2025, à exceção do Imposto Seletivo. No mercado, já existe a sensação de que o governo perdeu o interesse por uma reforma ampla, preferindo garantir aumento da receita da União a curto prazo por meio de leis e medidas provisórias, como a MP 1.171, vislumbrando algo em torno de R$ 180 bilhões para a somatória das ações acima mencionadas. O fato é que ficará muito difícil saber qual será a carga tributária no Brasil, pois o fatiamento sem prévia discussão no Congresso impedirá a noção do conjunto, o que não é bom. Nessa sanha arrecadadora, o governo desrespeita o Congresso e contradiz seu próprio discurso inicial segundo o qual a reforma tributária é fundamental para o país, como de fato é. Corre-se o risco do Brasil desperdiçar excelente oportunidade para remodelar o nosso criticado arcabouço tributário para salvaguardar apenas um ente federativo (a União), aumentando sua fatia no bolo arrecadatório que já é grande, entre 59% e 60% de tudo o que é arrecadado compulsoriamente.
O momento atual anuncia a repetição de velhos erros, muito custosos ao desenvolvimento nacional, notadamente a busca pelo equilíbrio fiscal ou redução do déficit público (hoje no insuportável patamar de 8% a 9% do PIB) somente pelo aumento da tributação, que atualmente alcança 33,91% do PIB. Nada se fala sobre redução de privilégios, ganho de eficiência, cortes de gastos e combate explícito e efetivo à corrupção.
O Brasil continua a ignorar a advertência feita pelo filósofo romano Marco Túlio há 2.078 anos, mas ainda atual: "O orçamento deve ser equilibrado, o tesouro público deve ser reposto, e a dívida pública deve ser reduzida, e a arrogância dos funcionários públicos deve ser moderada e controlada e ajuda a outros países deve ser eliminada, para que Roma não vá à falência. As pessoas devem novamente aprender a trabalhar em vez de viver às custas do estado." A correção do rumo é urgente e possível. E, mais que um reclamo dos setores produtivos, uma necessidade do país.
(*) É engenheiro, com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros Brasil, um país à deriva e Caminhos para um país sem rumo. Site: https://samuelhanan.com.br.
Empresas & Negócios - Matéria de Capa - SP - 15/08/2023