Luiz Alberto Marinho* - O Big Show do Varejo, como é conhecida a convenção anual da NRF – National Retail Federation, segue atraindo multidões a Nova York, nos Estados Unidos, e apontando os rumos do varejo. A última edição, em janeiro, não foi diferente e trouxe importantes lições para a indústria de shopping centers.
Quer saber quais foram elas? Então, vamos lá.
1 – Mundo em transformação
Várias das melhores palestras da NRF 2023 falaram sobre tendências para o futuro. Não é à toa. Com tantas transformações em curso e muitas incertezas à frente, precisamos todos de bússolas precisas para navegar pelas estradas sinuosas que nos esperam.
A WGSN, como sempre, provocou boas reflexões na plateia em sua concorrida apresentação. Uma das tendências mais interessantes abordadas na palestra da Andrea Bell, diretora da WGSN, foi a da descentralização cultural promovida pelo digital. Olha só esse dado que ela trouxe: nada menos do que 91% dos americanos entre 18 e 25 anos acreditam que não existe mais uma cultura pop mainstream. Isso significa que apelar para influenciadores com milhões de seguidores, com o objetivo de ampliar presença junto aos novos consumidores, provavelmente não funcionará em pouco tempo.
Outro bom insight veio de Kate Ancketill, fundadora da consultoria britânica GDR. Ela alertou que, diante da escassez de recursos, seja econômicos, seja de insumos, estamos vivendo o fim da “Era da Abundância”. Isso altera basicamente as dinâmicas da indústria e do varejo e, principalmente, o comportamento do consumidor.
De fato, um dos assuntos mais repetidos na NRF desse ano foi a cautela dos consumidores, afetados pela inflação global, pela instabilidade empregatícia (viram a quantidade de demissões em empresas importantes nos últimos tempos?), pela crescente consciência de que os recursos da natureza estão em risco e ainda por ameaças de conflitos entre países e novas pandemias.
As consequências desses movimentos para os shoppings serão muitas. A começar pela aposentadoria definitiva do rótulo de “templo de consumo”, passando pela estratégia de engajamento com microcomunidades, identificadas por valores comuns. Para fechar, aumenta a urgência pela busca de um novo modelo de negócio, que permita monetizar efetivamente o fluxo de clientes qualificados que suas operações de alimentação, serviços diversos e entretenimento atrairão.
2 – Polarização do varejo na ordem do dia
Como consequência do que a WGSN chamou de “policrises” (uma sequência aparentemente interminável de crises encadeadas) e do fortalecimento do segmento que a Euromonitor classificou como budgeteers (consumidores extremamente preocupados com o orçamento), o varejo orientado para valor tem aumentado seu protagonismo.
Perguntados pela Euromonitor se pretendiam alterar seus hábitos de consumo, nada menos do que 46% dos entrevistados em todo o mundo disseram que vão economizar mais dinheiro nos próximos 12 meses. Tem mais: 31% afirmaram que elevarão visitas a lojas de descontos. Não é à toa que o aumento de novas lojas nos Estados Unidos foi fortemente influenciado pelas lojas de preços baixos, que representaram 36% das aberturas, de acordo com dados da Coresight.
Outro estudo apresentado na NRF pela Kantar mostrou que 36% dos americanos estão trocando de marcas para cumprir o orçamento doméstico. Isso inclui buscar produtos mais baratos, caçar promoções e trocar marcas conhecidas por marcas próprias da loja. A mesma pesquisa mostrou que 48% dos consumidores querem se sentir seguros de que estão pagando o menor preço por determinado produto.
Um segmento que está crescendo a olhos vistos em todo o mundo, turbinado pelo interesse das pessoas por mercadoria de qualidade a preços mais baixos, é o de revenda de produtos usados. Ao contrário do que vinha acontecendo, não serão os brechós e sim redes varejistas que impulsionarão esse negócio daqui para a frente. E isso vale não só para roupas, mas também para livros, móveis, eletrônicos, celulares e outros artigos. Vale acompanhar com atenção como o mercado brasileiro assimilará essa tendência.
Por outro lado, o varejo de luxo vive uma realidade bem diferente. Focando em relacionamento e experiências, mantém sua base de clientes, menos sensíveis às flutuações econômicas, e segue apresentando bom desempenho. De acordo com projeções da Bain & Company, o setor de luxo cresceu 21% em 2022, na comparação com o ano anterior. Significativamente, a NRF deu esse ano bastante atenção às marcas de luxo, que protagonizaram diversas sessões relevantes.
Para os shoppings, o ponto de atenção vai para as marcas posicionadas no meio, entre o varejo de valor e o de luxo. A polarização do consumo deve prosseguir, com uma maior migração de clientes das marcas intermediárias para as mais acessíveis, como Primark lá fora e Renner e Riachuelo, por aqui.
3 – Retorno das lojas físicas
Em uma das principais sessões do segundo dia da NRF 2023, Ron Coughlin, CEO da Petco, rede de lojas para animais domésticos, fez uma espécie de desabafo. Ele disse: “Perdi a conta da quantidade de pessoas inteligentes que falaram para eu me livrar das minhas lojas físicas. Mas eu pergunto, em primeiro lugar: o que é uma loja? Uma loja é um lugar que tem um hospital? Não sei se estamos falando de uma loja, se seu estoque permite a entrega de compras online no mesmo dia nas redondezas. Não são somente lojas, mas ativos estratégicos para nós.”
O discurso de Coughlin não poderia traduzir melhor o movimento de ressurgimento das lojas físicas. Dados da Coresight mostraram que, em 2022, houve 50% menos fechamentos e 1% mais aberturas de lojas nos Estados Unidos, em relação a 2021. Mas não são lojas como as que conhecíamos. São, como temos repetido aqui, lojas com novas e ampliadas funções. Servem para capturar dados sobre as preferências dos consumidores, como a novíssima Amazon Fresh, repleta de câmeras e sensores que permitem que os clientes não precisem passar no caixa para pagar suas compras. Lojas que apoiam a logística, como no caso da Petco. Que vendem serviços, incluindo alimentação, como faz a Nordstrom, que até criou uma subsidiária para administrar o negócio de foodservice dentro das suas lojas.
Lojas funcionam ainda como importantes canais de mídia. Um dos aspectos mais interessantes observados nesta NRF e nas visitas que fizemos ao varejo americano foram as lojas que atuam como mídia da marca. Isso não é exatamente algo novo, mas vem ganhando mais força recentemente, em função da perda de eficiência da mídia tradicional e da deterioração da relação custo/benefício das mídias digitais.
Na Google Store, as vendas produzidas pela equipe de loja não são nem monitoradas. O objetivo é marketing. O mesmo acontece com a loja das sandálias brasileiras Melissa em Manhattan, que está sob a responsabilidade direta da área de Marketing. A H&M abriu um novo espaço em Williamsburg, no Brooklin, que serve basicamente para engajar clientes com a marca, proporcionando experiências e apresentando novas tecnologias.
Mas as lojas físicas também serão um canal de mídia para outras marcas. Uma instigante palestra na NRF, feita pelo pessoal do eMarketer, mostrou que as redes de mídia formadas por marcas varejistas (Retail Media Networks) vão compor a terceira onda de publicidade digital, depois da era dos mecanismos de busca e das redes sociais. Isso explica por que varejistas nacionais importantes, como Magalu, estão incorporando veículos digitais ao seu ecossistema.
O ponto aqui é o papel que as lojas físicas podem desempenhar nesse cenário. Além de enriquecer o processo com dados reais de comportamento do consumidor, as lojas proporcionam aos anunciantes a possibilidade de que a venda aconteça imediatamente após o cliente assistir a alguma publicidade no local. Por isso, elevam bastante o valor das redes de mídia varejistas.
Para os shoppings, temos aqui vários insights. Se as lojas têm diversas funções, além da venda, faz pouco sentido a composição do aluguel ser exclusivamente calculada em função da venda produzida naquele espaço. Além disso, pequenos lojistas que usam a loja basicamente para vender terão maior dificuldade em competir com os grandes e pagar o custo de ocupação pedido pelos shoppings. Por fim, aumentar a exploração do próprio mall como mídia deverá ser um desafio prioritário, dado seu potencial de elevar e diversificar receitas.
4 – A busca por ‘share of life’ (participação na vida)
Em sua apresentação no último dia da NRF 2023, a Kantar lançou um conceito fascinante: o próximo grande objetivo do varejo será ampliar o seu envolvimento com a vida de seus clientes. O que eles chamaram de “share of life” (participação na vida das pessoas).
Isso faz muito sentido. Lululemon há muito tempo convida os clientes para fazerem aulas de ioga em seus espaços. Lego propõe que as crianças se divirtam nas suas lojas. Ulta Beauty quer que as mulheres que compram na loja também passem tempo lá fazendo as unhas, sobrancelhas e escovas nos cabelos. A novíssima Starbucks Reserve, construída no Empire State Building, conta com salas de trabalho e de reuniões, que podem ser reservadas pelas pessoas.
O que buscam todas essas marcas? Construir um senso de comunidade e ao mesmo tempo propor novos estímulos para que as pessoas passem mais tempo em suas lojas – e dessa forma concentrem mais gastos nesses locais. A ideia de investir na ampliação do “share of life”, proposta pela Kantar, vai na mesma direção apontada pela GDR, da Kate Ancketill. Ela defendeu a tese de que estamos mergulhando de cabeça na “Economia da Dopamina”, onde o consumidor, para se sentir melhor, deixa de comprar pequenas indulgências e passa a preferir experiências imersivas.
Tudo isso é música para os ouvidos dos profissionais de shopping centers, é claro. Fez parte do study tour que promovemos antes da NRF uma visita ao American Dream, megamall da Triple Five, que possui 50% da sua área dedicada a entretenimento. Com isso, busca capturar mais horas dos momentos de ócio de seus clientes. Nesse sentido, restaurantes, unidades de saúde e de educação, bem como outras operações capazes de fazer as pessoas passarem mais tempo ali, devem ganhar espaço no mix dos shoppings. Na mesma direção, pet parks e áreas de recreação infantil gratuitas deverão ser tão obrigatórios quanto fraldários.
5 – Foco nos funcionários
Finalmente, a última das tendências extraídas da NRF 2023 diz respeito a pessoas. Faz tempo que um Big Show não falava tanto sobre a importância dos funcionários no varejo.
Em um dos principais painéis dessa edição da NRF, o CEO da Neiman Marcus, Geoffroy van Raemdonck, afirmou que, para se diferenciar da concorrência, é preciso construir relacionamentos com seus clientes. Ora, relacionamentos acontecem entre pessoas. Como promover isso sem contar com funcionários altamente engajados?
Para que isso possa acontecer, grandes empresas passaram a olhar para seus funcionários com outros olhos. Steven Williams, CEO da PepsiCo, trouxe a ideia de reduzir fricção, muito usada para definir as experiências dos consumidores, para o universo dos colaboradores. “Estamos investindo na criação de melhores empregos para o futuro, empregos sem fricção”, ele disse.
Talvez esse seja o maior desafio para o varejo brasileiro – e para os shoppings também. O desempenho da maioria das equipes de loja é medido principalmente pelas vendas que geram. O desestímulo costuma ser grande entre os trabalhadores no varejo. Se nem todos os varejistas estão atentos à importância dos recursos humanos, para que as lojas físicas cumpram o importante papel que necessitam ter caberá aos shoppings não apenas conscientizar seus lojistas como também criar programas para atualizar competências e elevar o astral dos vendedores de loja.
Enfim, estamos diante do imenso desafio de atravessar uma fase de transição, entre o varejo como sempre foi e o novo varejo, em que o vínculo entre quem compra e quem vende deve ir muito além do transacional. É o varejo “human centric”, ou centrado nas pessoas.
Não é fácil colocar tudo isso de pé. Como apontou a Kantar em sua apresentação na NRF, será bem complicado gerenciar as contradições entre a necessidade de investir na evolução do negócio, incluindo gastos com novas tecnologias, novos formatos de lojas e na satisfação das pessoas, e ao mesmo tempo apresentar resultados positivos na última linha do balanço.
Uma coisa é certa: o varejo, definitivamente, não é mais o que era antigamente. Cabe aos shopping centers entenderem isso o mais rapidamente possível, para construir uma nova rota em direção ao futuro.
*Luiz Alberto Marinho é sócio-diretor da Gouvêa Malls.
Mercado&Consumo, janeiro de 2023